Polícia Civil de SP manda email com foto de suspeito para reconhecimento
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Após ter seu celular roubado em São Paulo enquanto passeava com o cachorro no fim de fevereiro, Viviane (nome fictício) registrou um boletim de ocorrência no início da semana seguinte. A ocorrência seguiu o padrão de muitas outras: um indivíduo numa moto a abordou, apontou uma arma e mandou que ela entregasse o celular e informasse a senha do aparelho.
Com o caso registrado na delegacia, ela chegou a manter contato por email com investigadores, dizendo, por exemplo, que a localização do aparelho, roubado em Pinheiros, na zona oeste, indicava seu paradeiro em uma galeria na rua Santa Ifigênia, na região central da cidade.
Mais de um mês depois, Viviane recebeu um email de um remetente que se identificava como investigador da Polícia Civil sobre informações referentes a um roubo de aliança. Ela estranhou, já que seu caso tratava de celular. Para auxiliar a investigação, dizia a mensagem, o agente encaminhava um arquivo com nome "fotos suspeito", com imagens do rosto de um homem e de seus braços e de parte do tronco, com tatuagens, além de uma motocicleta vermelha.
Não há identificação do jovem no email. No texto, o investigador diz que ele é um suspeito de realizar roubos de aliança na região do 14º Distrito Policial, em Pinheiros. Se quisesse mais informações sobre o caso, Viviane deveria ir à delegacia. O investigador também pedia a confirmação de recebimento, que ela não enviou por desconfiar da mensagem.
A reportagem teve acesso ao email, que foi enviado pelo domínio @policiacivil.sp.gov.br, usado pela Polícia Civil. Ele também segue o padrão das mensagens enviadas por investigadores a vítimas de crimes, como a correspondência com Viviane sobre o caso de roubo do celular.
É possível que o autor da mensagem tenha confundido destinatários ao enviar para uma vítima de roubo de celular a mensagem sobre alianças. Mas para o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o advogado Guilherme Carnelós, a divulgação de uma foto de uma única pessoa vai contra o que está estabelecido no Código de Processo Penal para o reconhecimento de suspeitos.
"Você tem que colocar a pessoa que reconhece num estado de possível dúvida, exatamente para que, se ela reconhecer, isso indique alguma certeza." Mas quando um investigador encaminha a uma vítima de crime a foto de alguém, já dá à imagem um selo de culpa, afirma o advogado.
Este tipo de indução é chamado de show up, segundo a advogada Flávia Rahal, cofundadora do Innocence Project Brasil e pode invalidar a prova de reconhecimento ou um eventual processo na Justiça. "Um reconhecimento feito nestes moldes, no meu entendimento, deve ser invalidado, não deve sustentar um processo criminal."
"O que a gente precisa ver dentro de um processo são as outras provas, eventualmente, que apontem para uma determinada pessoa, mas este ato do reconhecimento não pode ser considerado válido como prova em processo penal", diz a advogada. Ela também cita que tribunais têm entendido que este tipo de reconhecimento induzido é ilegal. "E por quê? Para que a memória possa funcionar da melhor forma possível. A memória não é uma máquina fotográfica, não tem cem por cento do registro daquilo que foi vivido."
Procurada, a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que o caso será investigado. "A Polícia Civil ressalta que as práticas citadas pela reportagem não condizem com os protocolos da instituição. Diante disso, a Corregedoria da instituição apura com rigor todas as circunstâncias relativas aos fatos. Caso sejam constatadas irregularidades, os responsáveis serão identificados e responderão pelos seus atos, nos termos da lei", diz a nota da Secretaria de Segurança Pública.
No ano passado, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou um manual sobre reconhecimento baseado em uma resolução de 2022 que diz que a autoridade deverá evitar a apresentação isolada da pessoa, de sua fotografia ou imagem. A falta de rostos para comparação, segundo o manual, levaria a vítima ou testemunha a reconhecer uma pessoa, mesmo equivocadamente, com muita confiança.
O procedimento correto, segundo Carnelós, do IDDD, começaria pela descrição pormenorizada feita pela vítima sobre o suspeito, seus traços e características. "Com base nisso, a polícia tem que selecionar pessoas que se alinhem todas com essa descrição, colocar junto com a pessoa suspeita para que a vítima faça o reconhecimento. E isso simplesmente não acontece."
O advogado diz também que as informações não poderiam ter sido divulgadas por email, já que constam de um inquérito e não são públicas. "Não existe uma LGPD penal, mas a lei [Geral de Proteção de Dados] em vigor não permite que autoridade fique circulando por email ou outros canais imagens colhidas e que estão sob custódia do Estado."
ASSUNTOS: Variedades