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A ilha de Bimimi


Por Públio Caio

05/12/2025 9h55 — em
Públio Caio



Da série “envelhecência”

 “Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta”. (Drumond: Livro“Corpo”)

“Eu vi uma ruga impressa no meu rosto, num discreto sinal de canseira; eu vi um fino fio de prata mal exposto, desbotando minha negra cabeleira. Já é tempo de trocar o mais depressa o decrépito espelho fosco da minha velha penteadeira!” (José Cyrino: Poema “Imagens”)

“Rugas são marcas da velhice, não são anomalias. São selos divinos autenticando suas bênçãos”. (Públio Caio) 

No artigo A Sinceridade do Espelho, vimos, pela citação de Fernando Pessoa, que “o espelho reflete certo; não erra porque não pensa.” Essa sinceridade incomoda existencialmente muita gente, a ponto de algumas pessoas adoecerem o corpo e o espírito ao perceberem que a velhice as alcançou, parecendo algo inesperado.

Para esse tipo de pessoa, inicia-se uma desgastante maratona em busca de mudar sua aparência física, num compulsivo desejo de ser jovem novamente, já que não adianta trocar “o decrépito espelho fosco” e nem “envenenar maçãs”, como na fábula da Branca de Neve.

Efetivamente, quem não gostaria de ser eternamente jovem? Esse desejo é muito antigo e faz parte de mitos e lendas, como a lenda do “elixir da juventude” ou “elixir da vida”, uma substância preparada por alquimistas para curar, regenerar o corpo e prolongar a vida indefinidamente. Há também a “pedra filosofal”, outro item mítico capaz de transformar metais em ouro e, ainda, produzir o elixir da vida eterna.

Um historiador grego chamado Pausânias refere-se a uma “fonte da juventude” situada no Peloponeso – uma península montanhosa localizada no extremo sul da Grécia, onde “Hera”, a irmã de “Zeus”, se banhava sempre, e por isso era sempre jovem.

A crença de que o “Jardim do Éden” se localizava nas Américas, segundo textos medievais, teria inclusive incentivado grandes viagens, pois, de acordo com essa ideia, ao lado das “Portas do Jardim” estaria a “Fonte de Juventas”, deusa romana da juventude e equivalente grega de Hebe, esposa de Hércules. Ela era a deusa da juventude e do rejuvenescimento.

Contudo, o registro mais atual a respeito da busca pela da eterna juventude se refere a Juan Ponce de León, que, em 1512, organizou uma expedição específica em busca da “fonte da juventude” e que, segundo informações dos nativos da região, tal fonte estaria situada no norte de Cuba, numa ilha denominada Bimini, um distrito das Bahamas, situada há 80 km de Miami. Reza a lenda local que existe, na ilha de South Bimini, um poço de calcário específico considerado a localização da mítica fonte da juventude. Atualmente, South Bimini é uma atração turística.

No passado distante, envelhecer significava construir uma ponte entre maturidade e a velhice usando as virtudes que lhes eram apropriadas, como a sabedoria, a prudência, a moral e a dignidade; nos dias atuais, infelizmente, envelhecer, para alguns, tornou-se um fardo na utópica busca de recuperar, a qualquer custo, a juventude perdida, numa manifestação de “corpolatria” doentia.

Nesse sentido, atualmente, como nas lendas e mitos, encontramos promessas de “fontes de rejuvenescimento” e pessoas dispostas a pagar por elas. A “Ilha de Bimimi” se apresenta, atualmente, de várias formas: na farmacologia, na cosmetologia, com esteticistas, em academias e “personal trainers”; de cirurgias estéticas faciais e corporais, na harmonização orofacial desenvolvida por uma especialização da odontologia, além de com nutrólogos e nutricionistas.

A geriatria, assim como a gerontologia – área multidisciplinar que estuda o envelhecimento humano de forma global, abrangendo aspectos biológicos, psicológicos e sociais –, também se associa às demais modalidades. Dentro dessas especialidades, muita gente mente descaradamente, oferecendo “a fonte da juventude” — algo impossível de ser alcançado – se revelando como “caça níquéis” e encontrando um grande mercado consumidor no processo de envelhecimento, especialmente entre aqueles que, psicologicamente e existencialmente, não aceitam a velhice.

Essa busca compulsiva pela juventude tem um custo financeiro, pois grande parte dessas intervenções estéticas possui valores elevados; traz ainda um custo ético, já que, sob o argumento de que corpo é de propriedade do indivíduo, ele acredita poder realizar qualquer tipo de intervenção, mesmo que o desnature. Assim, um corpo é construído sob a perspectiva do outro e para que ele possa ser olhado pelo outro.

Há um pensamento burlesco, anônimo, que, embora expresso de forma dura, tem razão ao afirmar que atualmente se investe cinco vezes mais em remédios e pesquisas para virilidade masculina e silicone para mulheres do que na cura do Mal de Alzheimer.

Por isso, daqui a alguns anos, teremos velhas de seios grandes e velhos de membro ereto, mas eles não se lembrarão para que servem. Um “pouco de vaidade”, certamente, ajuda algumas pessoas a enfrentarem a realidade da velhice; afinal, quem não gosta de si, inclusive de sua própria aparência física, dificilmente poderá gostar dos outros, embora a autoestima esteja relacionada à aceitação e ao valor que a pessoa atribui a si mesma, independentemente da admiração alheia.

Assim, uns pequenos “reparos”, como pequenas doses de toxina botulínica, ácido hialurônico, bioestimuladores de colágeno, peelings e pequenas intervenções cirúrgicas, como blefaroplastia e ritidoplastia, podem ser úteis para a melhoria da autoestima, embora não sejam uma solução definitiva para a aceitação de si mesmo e da realidade do envelhecer.

A ciência aponta que atividade física, ao pôr fim ao sedentarismo, uma alimentação equilibrada, uma boa noite de sono e o descanso são excelentes remédios preventivos e até curativos para situações relacionadas à qualidade da velhice, tanto para quem já chegou a essa fase quanto para quem se aproxima dela.

O bom humor, ausência de estresse, o lazer, as viagens, a boa companhia (quem sabe, um bom cálice de vinho) são ainda componentes importantes. Além disso, a leitura, o aprendizado de idiomas ou um instrumento musical são excelentes para estimular o cérebro, especialmente a memória. Entretanto, a “desilusão narcísica” decorrente da sinceridade do espelho não pode ser resolvida no plano do cosmético.

Seria uma tarefa inglória, como no mito do “Tonel de Danaides”, em que mulheres foram condenadas a encher continuamente um tonel sem fundo para lavar suas culpas. Tudo em vão, sem nunca produzir resultados definitivos. Pode, contudo, ocorrer que essa necessidade de intervenções estéticas surja a partir de uma “dismorfia corporal” – Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) –, em que as pessoas têm uma visão distorcida e crítica da própria aparência e podem buscar procedimentos repetidos e desnecessários, sem nunca estarem satisfeitas.

De igual modo, a busca incessante por um padrão de beleza inatingível, imposto pelo desejo de obter milhares de likes e seguidores nas redes sociais, assim como pela pressão dos padrões da sociedade, pode levar ao adoecimento físico e mental, com riscos de procedimentos inseguros ou excessivos. Todos esses cuidados com a aparência externa, portanto, devem ser realizados com devida moderação, pois não são procedimentos mágicos capazes de nos devolver a juventude, como o sonhado elixir ou a pedra filosofal, mas práticas que apenas “retocam” os sinais externos da velhice.

Dessa maneira, “juvenilidade” não pode ser confundida com “jovialidade”, como explica Vilhena1 . Segundo a autora, a “juvenilidade”, é biológica, enquanto a “jovialidade”, é existencial e simbólica. Jovialidade, diz ela, é um nome que inscreve uma condição divina — vem do deus Júpiter, no latim “jovis”, outro nome que podemos dar para alegria, para a aceitação da vida tal qual ela nos aparece.

Na alegria da jovialidade, “moço e velho se reencontram, trocam e podem sentir a mesma saudade que em vida se sente da vida, de partes nossas, saudades das partes corporais, de partes espirituais, que morrem ao longo da existência”. Por isso, um velho pode ser jovial, mas nunca será jovem novamente. 

Machado de Assis, em Dom Casmurro, diz:

“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar, na velhice, a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim.”

Verdadeiramente, nem tudo pode ser tingido, nem tudo pode ser restaurado; ainda que nos submetamos às mais apuradas técnicas de cirurgias plásticas e procedimentos de reparação cosmética, jamais conseguiremos mascarar o espírito.

Muita gente, nessa luta contra a velhice, exagera de tal modo que se torna irreconhecível, transformando, por exemplo, a “harmonização facial” numa “demonização facial”; outros, para piorar, além dessas preocupações estéticas, comportam-se de forma ridícula ao tentar parecer mais jovens do que são, inclusive no comportamento social, no modo de se vestir, nos trejeitos e na linguagem.

Sem dúvida, são sinais da não aceitação do processo de envelhecimento, uma recusa à realidade — um prato cheio para psicanalistas, pois os extremos sempre são prejudiciais. Drummond, no poema “As Contradições do Corpo”, demonstra esse problema relacionado à identidade de um sujeito e ao seu corpo, nos seguintes versos:

“Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta.”

Diante desse dilema, parece mais fácil navegar para a “Ilha de Bimini”. De fato, Bimini, a “ilha dos sonhos e elixires”, possivelmente está bem ali, quem sabe, pertinho da sua casa. Bimimi tem propaganda na TV, em jornais, no “instagram”, no “facebook”, no youtube; tem placa com luz de neon, tudo para atrair os consumidores desse novo mercado que o envelhecimento está gerando na sociedade. Sim, queiramos ou não, o capitalismo sabe tirar proveito de todas as situações. Mas, sejamos honestos: a “fonte de juvenas”, infelizmente, não foi encontrada em Bimini, como esperava Juan Ponce de León.

Nem o elixir, nem a pedra filosofal existem. O que existe é a vida, um dom de Deus, uma tarefa, uma missão que o ser humano é chamado, vocacionado a cumprir; cuidar do corpo com responsabilidade e zelo, sim, pois “o corpo é o templo do Espírito Santo”, como afirma Paulo em 1Cor 6,19-20. Mas o mesmo apóstolo diz: “Antes, pelo contrário, embora se destrua em nós o homem exterior, todavia o homem interior vai-se renovando de dia para dia[..] não atendendo nós às coisas que se veem, mas sim às que se não veem.

Com efeito, as coisas que se veem são passageiras; as que não se veem são eternas” (2Cor 4,16-18). Ser velho não pode ser motivo de vergonha, menos ainda motivo para qualquer intervenção no corpo visando combater os traços da velhice como se fossem anomalias. De fato, rugas são marcas da velhice, não são anomalias.

E marcas da velhice são “selos divinos”, a marca de Deus que autentica Suas bênçãos, ainda que, para alguns, funcionem como um “QR CODE” indicando que a data de validade pode estar prestes a expirar.

Certamente você já ouviu a expressão “fulana é linda por dentro”, ou a outra que diz “a beleza está nos olhos de quem vê”, e ainda “toda panela tem sua tampa”. Essas expressões afastam a beleza da própria coisa, deixando-a de ser um dado objetivo e deslocando-a para a subjetividade e sensibilidade do observador. Por isso, nada e ninguém é inteiramente feio ou bonito, pois não existe um “padrão de beleza transcendente”.

Esse dito popular encontra respaldo na filosofia de Espinosa, o qual afirma que a beleza não é objetiva nem atributo das coisas em si, tornando-se uma experiência afetiva que perpassa a “aisthesis” ou sensibilidade, um tipo de afeto que surge do encontro com algo que nos alegra. Belo é o que nos alegra e agrada e feio o que nos entristece. A beleza e a feiura estão, portanto, ligadas ao conhecimento das causas que nos afetam.

Quando compreendemos as causas que nos afetam e aumentam nossa potência de agir (energia vital), a experiência torna-se mais forte e é considerada bela. Quem está resolvido quanto ao processo do envelhecimento está em paz e feliz consigo mesmo, e essa felicidade, essa “potência de agir” chama os outros para a sua felicidade.

Nisso se constitui a beleza. Portanto, deixe os “espelhos foscos da velha penteadeira” em paz. Aceite-se, pois sua aceitação social será mais fácil. Cuide de sua aparência física sem descuidar da sua beleza interior. Assim, por trás de intervenções cosméticas, jamais conseguiremos “juvenilidade” - o retorno ao estado de juventude.

O uso do ácido hialurônico pode até repor o volume perdido e tratar rugas profundas no rosto; porém, jamais preencherá o grande vazio existencial e as “rugas interiores”, que permanecerão visíveis se não houver aceitação dessa realidade. Sejamos nós mesmos, autênticos.

Diz Saramago num texto intitulado:

“Quantos anos eu tenho?”: “O que importa se eu faço cinquenta, sessenta ou mais! Pois o que importa, é a idade que eu sinto! Quantos anos eu tenho? Isso!… Quem se importa? Eu tenho os anos necessários para perder o medo E fazer o que eu quero e sinto!!.

** O autor é Procurador de Justiça do MP/AM. Bacharel em Filosofia assíduo estudante de temas teológicos.

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