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TUDO O QUE FOI, SERÁ!


Por Públio Caio

11/10/2025 22h46 — em
Públio Caio



No ano de 1983 o cantor Lulu Santos lançou uma música que é tocada até hoje, chamada Como uma Onda, que começa com esses versos: “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; tudo passa, tudo sempre passará”.

Muito antes de Lulu Santos, na transição do século VI ao V a.C, na cidade de Éfeso, um filósofo pré-socrático e membro da “escola jônica” chamado Heráclito, já “cantava essa pedra”: “Não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio, pois as águas renovam-se a cada instante”. Era o princípio da dialética e da ideia sobre o devir, a constante transformação e mudança de todas as coisas, o vir a ser, ou transição de um estado para outro, em oposição à permanência ou imutabilidade do “ser”.

Hoje perece óbvio afirmar que nada pode ser igual ao que se passou.

Mas, será mesmo que nada do que foi será e tudo passa e passará, como cantam os versos de Lulu?

Proponho uma afirmativa contrária: TUDO O QUE FOI, SERÁ e buscar uma reflexão filosófica, psicológica e teológica.

Analisando com cuidado os versos do Lulu Santos, veremos, em princípio, que não há contradição com a afirmação Tudo o que foi será!

Diz Lulu Santos que Nada do que foi será, do jeito que já foi um dia.

Se nada do que foi será do [mesmo] jeito que já foi um dia, é porque esse “novo jeito”, é um outro jeito, diferente do anterior. É pois, uma outra coisa. Então, aquela “coisa que já foi” não poderá ser “a coisa que será”, e continuará sendo a que foi, e nem poderá ser de novo porque já é passado e este não se repete. Assim, tudo o que já foi, continuará sendo o que é, porque já foi, e porque se foi, tornou-se passado e não pode ser modificado, permanecendo e eternizando o que é, naquilo que foi.

Nessa esteira de raciocínio, Victor Frankl, psicoterapeuta, da Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, afirma que “Ter sido é a maneira mais segura de Ser” (ou ainda ser).

Conta-se que numa visita ao colega Victor, Heidegger teria escrito no verso de uma foto dedicada a ele: “O passado se distancia. O que foi, se aproxima”1

O tempo passado leva consigo os detalhes de um evento ou de uma pessoa, causando o esquecimento; com o tempo passando, os sentimentos iniciais diminuem naturalmente e até a nossa própria percepção de "quem fomos" se dilui.

Entretanto, “O que foi, se aproxima”, na medida em que o que restou das experiências se tornam presentes e atuais, de modo que as marcas e consequências dos eventos e das nossas ações e das ações de outros, servirão para moldar nosso presente e nosso futuro. Em outras palavras, os fatos se distanciam no tempo passado, porém as consequências, marcas e ações, experiências, permanecem bem atuais.

Nietzsche fez uma grande provocação para a humanidade através da teoria filosófica (ou mesmo um experimento mental) chamada Eterno Retorno, ou do Peso mais Pesado, provocação de natureza ética e existencial, traduzida simploriamente como tudo o que fizermos retornará futuramente do mesmo e exato jeito que foi feito (contrariando a música de Lulu Santos). A pergunta é: você aceitaria viver tudo novamente, exatamente igual, eternamente? Repetir tanto as coisas grandiosas quanto as terríveis, vergonhosas, tristes, dolorosas?

Desse modo, todas as nossas escolhas, feitas agora, à luz de valores e da liberdade que temos, retornariam infinitamente e nos exatos termos daquelas escolhas.

Com isso, joga-se nas costas de cada um de nós uma responsabilidade ética pelas nossas escolhas nos levando a “transvalorar” nossos valores, o que em si pode significar um grande risco

Destarte, “tudo o que foi, será” eternizado no passado.

Levemos em conta que o movimento do tempo, no Chronos, torna difícil a separação dos instantes temporais: hoje foi o ontem, sem deixar de ser o agora; mas, amanha, futuro, também será ontem ao se tornar hoje, deixando de ser futuro. Futuro, passado e presente acabam quase que se misturando, sem perderem suas características temporais, cronológicas.

Para melhor entender tudo isso, Victor Frankl apresenta as três dimensões do tempo em nossas vidas, marcadas com características diversas, e o faz mediante sua analogia do tempo a partir de uma ampulheta.

Analogia da ampulheta

A analogia da ampulheta ilustra a passagem do tempo e a responsabilidade da vida, responsabilidade fundada na liberdade de escolha. A relação tempo, liberdade e responsabilidade caminham juntas.

O tempo, como percebido pela experiência humana, é transitório e por tal exige de nós responsabilidade para escolhermos livremente a ações a serem tomadas como respostas às questões da vida. E sempre estaremos livres para escolher, nem que seja, apenas, por uma liberdade interior.

Decerto que o modo como nos comportamos diante das possibilidades de escolhas, trará consequências distintas para o sentido que daremos à vida. Por isso podemos afirmar que sempre poderá haver uma possibilidade de escolha.

Goeth, citado por Victor Frankl, disse que “não há situação que não possa ser melhorada ou pela realização ou pela tolerância”, ou seja, ou mudamos o “destino”, quando possível, mediante o agir, ou o acolhemos de boa vontade.

A vida não é só sucesso e vitórias. Ao contrário, é mais sofrimento que vitórias. Se mesmo diante dessa realidade, a vida tem sentido, então, o sofrimento, que também faz parte da vida, tem sentido. O que importa é saber encontrá-lo.

Nossa responsabilidade pela vida nos impulsiona a tomar decisões. A desgraça, o infortúnio, a infelicidade, podem nos fazer crescer e aprender, o que acontece quando agimos interiormente, mesmo que nada posamos fazer exteriormente.

No Livro III de sua “Ética”, tratando sobre sistemas de afetos, Spinoza afirmou que o sofrimento deixa de ser sofrimento, tão logo formamos uma ideia clara a seu respeito.

Em outras palavras, se descobrimos um porquê, uma razão pela qual sofremos, de fato podemos transformar o sofrimento em sacrifício. E aqui o sentido do sacrifício está na sua capacidade de transformar o sofrimento em algo significativo, que se torna suportável por estar ligado a um propósito maior.

Enfrentar interiormente as adversidades é uma decisão que pode mudar nossa vida, como aconteceu, por exemplo, com os prisioneiros sobreviventes dos campos de concentração narrados por Victor Fkankl. E nesse sentido disse Johan Holdelin, poeta alemão: “Quando piso sobre meu infortúnio, fico acima dele”.

Retomemos a analogia da ampulheta. E como essa analogia funciona?

Como sabemos, a ampulheta tem uma parte superior, seguida de uma passagem estreita por onde corre a areia até chegar na parte inferior.

Para Victor Frankl, a parte superior é o futuro.

O futuro é o campo das finitas possibilidades. É aquilo que pode vir a ser. Não é apenas um tempo que virá, mas fonte de esperança, sonhos, projetos e do propósito de vida, das nossas razões para viver, campo onde se deve encontrar o sentido da vida, um porquê para viver.

O futuro dependerá diretamente das tomadas de decisões que realizamos no presente. Cada escolha "cria no mundo" algo que tem uma consequência eterna, que se registra no passado, mesmo que não seja percebida imediatamente.

Descendo a areia da parte superior, passa por um fino e estreito canal.

Na analogia, esse canal estreito é o presente. Victor Frankl afirma que a vida se qualifica por um chamado, uma vocação, uma convocação para uma tarefa, um dever, uma obrigação, desenhada para o futuro como aquilo que pode vir a ser.

A vida como tarefa, dever, obrigação, vocação ou missão, nos dá uma característica essencial do humano: nossa singularidade e, enquanto “função” na vida, somos insubstituíveis.

Eu sou o pai dos meus filhos, filho dos meus pais e não poderia ser diferente, senão seríamos outros. Logo, minha responsabilidade existencial vincula-se à minha obrigação e dever de responder às questões da vida em razão dessa singularidade. Somos todos singulares, inclusive nas nossas imperfeições.

Citando um dos fundadores do Talmud, Hillel, Victor Frankl nos lembra de um dos seus aforismas: “Se não eu, se por mim, se não agora”.

Se não eu…” mostra a primeira exigência existencial de nossa singularidade. (Lembrei do refrão da música de Charlie Brown Jr: “Se não eu, quem vai fazer você feliz”).

“Se eu não faço, quem mais o fará”? Essa frase denota o caráter de responsabilidade decorrente da singularidade do ser, do ser insubstituível existencialmente, na sua tarefa ou missão de vida.

Se por mim”, questiona-se o Ancião. “Se eu fizer só por mim, que serei eu?” Isso ressalta que viver de forma egoísta diminui a humanidade, perde valor, pois deixa de ser uma singularidade de serviço. A singularidade é, então, uma singularidade “para” e não em si mesma.

Se não agora”, destaca a importância de agir no momento presente, pois a vida é finita e as oportunidades podem não se repetir. Aqui aparece a singularidade ou caráter único não apenas da pessoas, mas das situações de oportunidades no tempo presente. Nesse diapasão disse o o poeta dramaturgo alemão, Hebbel: “A vida não é algo, mas oportunidade para algo”.

Assim, o presente, é, portanto, a mudança ou passagem do que pode vir a ser (futuro), para aquilo que deve ser. No presente, as oportunidades se revelam. É o tempo do Kairós, entendido como "momento oportuno", o tempo certo ou a oportunidade especial, em contraste com Chronos, que representa o tempo cronológico e sequencial, mecânico e repetitivo. Kairós pode ser visto como a experiência do "tempo de Deus" ou o tempo (oportunidade) que Deus nos presenteia para agirmos. É um tempo qualitativo e determinado, onde algo especial e transformador acontece, sem ser medido por horas ou minutos.

Lembrem de Eclesiastes 3: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”.

É no presente, no “tempo de Deus”, que as oportunidades se apresentam para nós. Caberá fazermos livremente as escolhas, agir ou não, fazer não fazer. Essas oportunidades do presente são acompanhadas da responsabilidade em dar respostas ao chamado, à vocação, à convocação Nem as oportunidades nem a vida se repetem. É aí que o problema do sentido da vida se apresenta, pois não devemos buscar um sentido abstrato, mas concreto, individual. Cada um tem sua vocação ou missão específica, uma tarefa concreta a cumprir, uma resposta a dar a cada problema que a vida apresentar. Vida é tarefa, obrigação, é indisponível.

Victor cita trecho de um poema de Rabindranath: “Adormeci e sonhei que a vida era alegria/ despertei e vi que vida era obrigação/ trabalhei e vejo que a obrigação era alegria”.

A responsabilidade, segundo Victor Frankl, é a capacidade humana de escolher sua atitude e encontrar sentido, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como a experiência em campos de concentração que ele experimentou.

Nesse caminhar, o sofrimento, perdas, dores, pedras e cruzes no caminho, devem ser respondidas, de forma livre e responsável. A liberdade interior, ninguém pode nos subtrair. Posso dizer sim ou não para as questões da vida, mas serei responsável pelas respostas.

Mesmo perante o que chamamos de “destino”, ou seja, aquelas circunstâncias sobre as quais não temos controle, somos chamados a agir.

Para Viktor Frankl, o destino não é a ausência de possibilidades de escolhas, mas a liberdade de escolher a atitude com que enfrentamos as circunstâncias inevitáveis, incluindo o sofrimento. Não somos determinados pelo ambiente, mas temos a capacidade de tomar uma atitude e, assim, dar um sentido à vida através do amor, da aceitação de um fardo ou da dedicação a uma causa, que são os nossos verdadeiros “destinos”. Como já afirmamos, transformar um sofrimento em sacrifício, dando a ele um significado ou sentido, é uma excelente resposta para a vida e para o sentido da vida. Nietzsche afirmou que “Quem tem um porquê para viver suporta quase qualquer como”.

Cada ação no presente é uma decisão para toda a eternidade, que "cria no mundo" uma realidade ou um sentido que não pode ser apagado, mas que pode ser moldado pela própria atitude e busca de sentido No presente, portanto, faço o que eu deveria fazer; tanto que se não faço o que deveria, pode nascer o sentimento de culpa e de arrependimento.

Descendo pela parte estreita da ampulheta, a areia cai na parte inferior, que é na analogia, o passado, tornando-se uma realidade eternizada, não podendo ser desfeita.

No plano teológico, nossas ações implicarão também com a eternidade. A ideia de purgatório está presente para a salvação da alma arrependida.

No passado estarão os registros de nossos sucessos e insucessos, realizações e

frustrações.

No nosso passado está o pretérito perfeito: eu fiz, eu agi, eu escolhei. Nossas escolhas

de possibilidades futuras concretizadas num momento presente, sobre as quais recairão nossas responsabilidades.

Mas, também, no nosso passado estarão registradas nossas atitudes no pretérito imperfeito do subjuntivo: se eu fizesse, se eu tivesse bem como o futuro do pretérito: eu faria, eu teria, eu diria.

Nesses modos e tempos verbais, no nosso passado, podem configurar neuroses e situações afetivas e emocionais que nos sujeitarão aos cuidados de terapeutas.

Se eu deixei de agir, busco no meu passo: E se eu tivesse agido? Ah, e se… eu faria diferente. Arrependimentos, culpas, frustrações, poderão advir dos registros do nosso passado, por não exercer a escolha correta, ou por não exercer a faculdade livre de escolha. Por isso, a nossa liberdade está em conexão com nossa responsabilidade.

O passado de cada um não é um simples movimento no tempo. Como vimos, é um conjunto de experiências registradas em algum lugar. Ele não volta, não se repete, mas não passa. Tudo o que foi será! Não será de novo, porque não se repete, mas será o que foi. Por isso, aumentam nossas responsabilidades. Tudo o que foi será, do jeito que foi um dia!

1 A questão do sentido em psicoterapia (J. Mitre, trad.). Campinas, SP: Papirus.

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