A sinceridade do espelho
A SINCERIDADE DO ESPELHO
Da série “envelhecência”
“O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.” (Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Alberto Caeiro)
“Se me perguntam a idade, se achar conveniente, até minto; pois não importa como o corpo se apresente, importa, para mim, a idade que sinto!” (José Saramago, com minha adaptação)
A velhice não acontece de repente, não é algo inesperado; qualquer um percebe que se trata de um processo lento e previsível.
Existe diferença entre envelhecer e ser velho. Envelhecer é um processo que, possivelmente, começa em algum momento da chamada maturidade, a qual também é um processo dependente do tempo, meio externo e de atitudes internas. É a fase em que começamos a perceber sinais de envelhecimento, sejam interiores ou exteriores. Trata-se do período apropriado para refletir sobre como envelhecer, de modo a chegar à velhice com qualidade de vida e, por ato de vontade, tomar decisões sobre o modo de viver.
Por sua vez, velho é aquele que chegou ao estágio final do processo de envelhecimento; assim, no envelhecimento, está o idoso e, na velhice, o velho.
Há, inclusive, alguns ditos anônimos interessantes que comparam idosos a velhos.
Dizem assim:
Idoso é quem ainda se exercita; velho é quem apenas descansa e reclama.
Idoso é quem ainda sonha; velho é quem apenas dorme.
Idoso é quem ainda se renova a cada dia que começa; velho é quem se acaba a cada noite que termina.
Idoso é quem ainda tem planos; velho é quem possui apenas recordações.
Em sua obra “A Velhice”, Simone de Beauvoir faz uma afirmação inquietante: “Nada deveria ser mais esperado e, no entanto, nada é mais imprevisto que a velhice”. Para alguns, é quase inacreditável que a velhice tenha chegado. “Uau, eu não a esperava tão cedo!”
O poema de Mario Quintana, “Recordo ainda”, retrata o sentimento de surpresa com a chegada da velhice, “que chega um dia, de repente”, e o desejo de ainda estar fora dela:
Estrada afora, após segui… Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!…
No poema "O Velho do Espelho", Quintana diz: “Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu? Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...Meu Deus, meu Deus... Parece meu velho pai – que já morreu! Como pude ficar assim?”
Cecília Meireles, pelo seu “eu lírico”, no poema “Retrato”, diz:
“Eu não tinha este rosto de hoje, Assim calmo, assim triste, assim magro, Nem estes olhos tão vazios, Nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, Eu não tinha este coração Que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, — Em que espelho ficou perdida a minha face?”
Maria Elizabeth Coleridge, romancista e poetisa britânica, traduziu muito bem esse pavor da velhice em seu poema “O Outro Lado do Espelho”:
“Sentei-me diante do meu espelho, um dia,”
e conjurei uma visão nua e crua,
Diferentemente dos aspectos alegres e joviais que outrora ali se refletiam.
Passar – como passam as visões mais belas –
E nunca mais voltar para ser
O fantasma de uma hora distraída,
Que me ouviu sussurrar: - 'Eu sou ela!'”
E, novamente, a majestosa Cecília Meireles, em “Mulher ao Espelho”:
“Que mal faz esta cor fingida do meu cabelo?
E do meu rosto, se tudo é tinta:
o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto?
Falará, coberta de luzes,
Do alto penteado ao rubro artelho.
Por que uns expiram sobre cruzes,
Outros, buscando-se no espelho”.
Estes versos, de distintos poemas, nos mostram que o sujeito que envelhece, apesar de ter consciência que aquela imagem espelhada lhe pertence, muitas vezes tende a recusá-la, ou seja, há uma falta de reconhecimento como imagem, embora mantida a identidade como sujeito, se ainda lhe resta saúde mental.
Délia Catullo Goldfarb, em belo texto sobre a velhice, afirma:
Quando um idoso se olha no espelho, o que este lhe devolve é uma imagem associada à deterioração, uma imagem com a qual ele não se identifica. Não há júbilo nem alegria; há apenas estranheza, e ele pensa: “esse não sou eu.” Novamente, observa-se uma discrepância entre a imagem inconsciente do corpo e a imagem que o espelho lhe devolve. (“in” Corpo, tempo e envelhecimento).
Todos esses versos mostram a dificuldade de aceitação da velhice, traduzida metaforicamente pelo reflexo no espelho. E, como disse Fernando Pessoa, “O espelho reflete certo; não erra porque não pensa”.
Alguns de nós, ao olhar no espelho, ao olhar para si, em algum momento percebe que a imagem refletida, que revela o início do processo de degeneração do nosso corpo, não corresponde à percepção interna que temos de nós mesmos. Ou seja, a imagem nem sempre reflete o sujeito: nem a imagem que outros têm de nós, nem a imagem que temos de nós mesmos, pois esta pode ser construída fora da realidade do nosso verdadeiro “eu”.
Isso pode ser saudável ou não. Se aceito o meu corpo envelhecendo externamente, mas decido viver o que sinto internamente, respeitando os limites físicos, é um bom começo. Plagiando o poeta, eu digo: se me perguntam a idade, se achar conveniente, até minto; pois não importa como o corpo se apresente, importa, para mim, a idade que sinto!
Se não aceito o que vejo, revolto-me e tento mudar a realidade externa a qualquer preço, ultrapassando meus limites, o caso é grave.
Sim, e espelho não erra porque não racionaliza, não procura desculpas nem sugere soluções mágicas ou fáceis.
Essa “sinceridade do espelho” pode nos causar uma desilusão narcísica, uma frustração profunda pela quebra da autoimagem, não apenas pela imagem que aponta rugas em nosso rosto, mas, sobretudo, pelo “espelho” representando a opinião dos outros, ou nossa necessidade de vivermos nos comparando com terceiros. “Espelho, espelho meu”…
Então, tomado de “surpresa” e tendo que enfrentar a realidade da velhice, alguns carregam o “inevitável” com preocupação, gastando energia emocional inutilmente, pois nada poderá alterar o resultado. Nesse momento, é bom lembar as palavras de Epíteto:
“Pergunte: Isso é algo que está ou não está sob meu controle?'
E, se não for algo que você controla, diga: 'Então, não é da minha preocupação.'”
Se não tenho controle, não tenho com que me preocupar. Queira ou não, é preciso ser estoico pelo menos uma vez na vida.
A velhice: “Todos os homens desejam alcançá-la, mas, ao ficarem velhos, lamentam-se. Eis aí a inconsequência da estupidez”, afirmou Cícero. E querem correr para longe dela, o que “não teria mais sentido do que querer, como gigantes, guerrear contra deuses”, completa o filósofo.
Então, “Por que antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro”, diz Sêneca. O medo do que pode acontecer no futuro impede-nos de experimentar a felicidade no agora. O passado já se foi; o futuro é incerto; somente o presente nos permite agir e vivenciar as experiências da vida.
Envelhecer é inevitável. Aos poucos, percebemos que passamos a viver uma vida diferente e em um ritmo distinto. Isso, muitas vezes, é causa de nossa exclusão social.
Entretanto, diz Machado de Assis: “vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga me aparece despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira.”
Por conta da “sinceridade do espelho”, além da desilusão narcísica, é possível que se desenvolva a “gerontofobia” ou “gerascofobia”, que é o medo excessivo de envelhecer e uma aversão a tudo que está relacionado à velhice, inclusive à convivência social com pessoas idosas. Isso pode levar a pessoa a buscar compulsivamente formas de evitar ou retardar esse processo.
É preciso evitar este extremo. O velho, o idoso e mesmo o jovem, precisam se abrir para o novo mundo que se descortina diante deles. Devemos agir como diz Fernando Pessoa: “Sinto-me nascido a cada momento, para a eterna novidade do Mundo”.
Encarar o envelhecimento com naturalidade e se preparar para essa nova fase, tão diferente, trará serenidade, paz, e possibilidade de ser feliz tanto quanto ou mais que quando era jovem.
Há um dito popular que afirma: “quem vive de passado é museu”. De certa maneira, é verdade, pois não podemos passar a vida “olhando pelo espelho retrovisor”. Evidentemente, que não devemos ficar presos ao passado, pois o que foi sempre será o que foi e jamais poderá ser modificado. Como sempre digo: o passado já se foi, o futuro é incerto; somente o presente nos permite agir e vivenciar as experiências da vida.
O sábio relembra o passado para agir melhor, o tolo, para maltratar-se e acovardar-se perante uma situação, diz Shopenhauer.
Por isso, a experiência de olhar no espelho, não apenas para ver nosso corpo, mas para enxergar o passado, pode ser enriquecedora e nos assegurar que valeu a pena, assim como pode nos alertar para necessidade de algumas mudanças a serem feitas no presente, pois amanhã já será o ontem de hoje. Independentemente da idade, como diz a letra da música dos Titãs, “enquanto houver sol, ainda haverá...” esperanças, sonhos, possibilidades.
Decerto, quem possui um passado digno e glorioso, quem possui legado moral, quem guarda boas recordações e alguém de quem sentir saudades, ao revérbero de sua imagem no espelho, não sentirá medo do que o espera adiante, nem vergonha do que o presente lhe entrega.
Em vez da desilusão narcísica, sentirá orgulho do que vê e, longe de querer se livrar do espelho, dirá, como no poema de Paulo César Pinheiro, interpretado por João Nogueira, que, ao se identificar com seu pai na imagem refletida, cantou:
“Mas tão habituado ao adverso
Eu temo se um dia me machuque o verso.
E o meu medo maior é o espelho se quebrar”.
Se o espelho reflete com sinceridade, não o apedreje; afinal, o “reflexo” não é um acusador. Aceite, não se culpe, não se julgue, não se rebaixe.
** O autor é Procurador de Justiça do MP/AM. Bacharel em Filosofia assíduo estudante de temas teológicos.
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