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Quarentena, para escravizados, era sinônimo de aglomeração

Por Folha de São Paulo

26/11/2020 2h05 — em
Variedades



RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Se em 2020 quarentena remete a isolamento social, o termo significava outra coisa para africanos escravizados recém-chegados ao Brasil: aglomeração. Dois séculos atrás, lugares como o Lazareto da Gamboa, na zona portuária do Rio de Janeiro, tinham capacidade para manter até mil pessoas trazidas ao país, que acabavam contraindo alguma doença contagiosa.

Esses arremedos de hospital ficavam próximos ao Cais do Valongo, região que serviu de porta de entrada para até 1 milhão de humanos escravizados.

"Era um complexo, uma organização muito bem azeitada. Havia um cemitério pra quem morria, e quarentena pra quem sobrevivia", diz Eliana Alves Cruz, autora de "O Crime no Cais do Valongo". "Um local obviamente insalubre, onde as pessoas ficavam amontoadas e eram marcadas. Religiosos passavam ensinando o Pai Nosso. Resumindo, uma loucura."

Muitos eram crianças, algumas menores de dez anos, lembra Cruz. "Todos os viajantes estrangeiros que aqui estiveram ressaltaram isso. Se chocava a eles, deveria chocar a gente também, mas estamos revestidos do cinismo do tempo."

Morte era sinônimo de mau negócio. Convocavam-se, então, negros barbeiros para tratar doentes. Apêndice da medicina popular, a profissão era recorrente entre os séculos 17 e 19 e difundiu práticas como sangria por meio de navalhas e tesouras.

Negociantes de escravizados desenvolveram estratégias para não desperdiçar o que viam como produto e também maximizar o preço de venda, afirma o historiador Cláudio Honorato na tese "Valongo: o Mercado de Escravos do Rio, 1758-1831", da Universidade Federal Fluminense.

"Os comerciantes lhes davam um tratamento diferenciado que incluía banho e duas refeições diárias com pirão de farinha de mandioca e fubá de milho. Utilizavam cozinheiros negros para conquistar maior confiança dos africanos, também davam-lhes frutas para evitar o escorbuto."

Para evitar suicídios, então associados à saudade do continente de onde foram sequestrados, e de quebra convencer os compradores da saúde dos escravizados, africanos recebiam pimenta (usada como estimulante gástrico e intestinal), diz Honorato. "Outra forma de curar a nostalgia era o incentivo à dança e ao canto coletivo de músicas de sua terra natal. Aqueles que se recusavam a tomar parte na dança eram forçados pelo feitor."

Aberto em 1810, o Lazareto da Gamboa foi uma alternativa à quarentena oficial, da Ilha de Bom Jesus, que comerciantes consideravam muito longe do Valongo. Cada escravizado ali internado valia aos seus idealizadores, três portugueses, 400 réis por cada escravizado. Hoje, o terreno pertence ao Banco Central.

Havia outros galpões para receber os negros que chegavam debilitados ao país. E um espaço para enterrar os que morriam, o Cemitério dos Pretos Novos.

Em 1814, um viajante alemão, G. W. Freireyss, visitou o lugar e assim o descreveu: "Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre da escravidão. Na entrada daquele espaço cercado por um muro de 50 braças em quadra, estava assentado um velho, em vestes de padre, lendo um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados de sua pátria por homens desalmados, e a uns dez passos dele, alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra os seus patrícios mortos, e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogavam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro".

O fedor, diz, era insuportável, o que o levou a concluiu que os enterros aconteciam uma vez por semana. Freireyss também relata restos de corpos descobertos por uma chuva que carregara a terra, e cadáveres nus, "apenas envoltos numa esteira, amarrados por cima da cabeça e por baixo dos pés".

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