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Repórter do GLOBO participa de experiência em que hóspede de resort paga para fingir ser do Bope

Por Agência O Globo

10/12/2017 20h12 — em
Rio de Janeiro



RIO — Um homem e uma mulher, na entrada do hotel Búzios Beach Resort, usam macacão, boné, coturno e têm o rosto pintado de preto. O macacão da jovem, também preto, tem generoso decote. Na frente deles, uma dupla de palhaços dá boas-vindas. Os bufões são totalmente ignorados por duas crianças, que chegam com os pais. Animadas, elas querem ficar ao lado do casal que faz cara de mau. Um homem, de camisa polo branca, aparece para fotografar e dirigir a cena:

— Range os dentes! — diz e emite um grunhido para não deixar dúvidas sobre o que espera dos “atores”.

Diante de outra leva de pequenos, ordena:

— Pulso cerrado!

O homem da polo branca é o porta-voz da PM do Rio, major Ivan Blaz. Poucas horas após dar entrevistas sobre um caminhão roubado à TV Globo, ele estava em Búzios, na sexta-feira, batendo fotos e recepcionando quem chegava ao Skull Experience (Experiência Caveira), uma espécie de “colônia de férias” de três dias cujo tema é o Batalhão de Operações Especiais (Bope), do qual fizeram parte Blaz e outro organizador do evento, Luciano Pedro.

Os visitantes ganhavam uniforme, caneca, caneta, chave e cortador de unhas, além de um chocolate crocante. Tudo com estampa de caveira. Embora nas redes sociais o curso prometesse treinamento intenso com os “homens de preto” da tropa de elite da PM, o que se via eram casais com ou sem filhos, muitos longe de um tipo físico atlético. Todos precisaram preencher ficha informando eventuais problemas de saúde.

Um Blaz brincalhão, diferente do oficial sisudo dos vídeos institucionais da PM, convocava os “caveiras” ou “combatentes” para uma palestra horas mais tarde, que acabou adiada para a manhã seguinte. Não era um contratempo. A maioria dos “caveiras” preferiu jantar. A “experiência caveira” começou depois do café da manhã, no sábado. Os inscritos foram para o salão de convenções. Em um telão, era apresentado um slide que começava com a imagem de uma... caveira. Logo, Blaz, desenvolto como um recreador, subiu ao palco e cobrou entusiasmo, com um bom-dia de quartel.

— Um corpo que não vibra é um esqueleto que se arrasta — incitou, lançando frases tiradas do jargão militar.

A palestra preparava para o que viria depois. Simulação de desarmamento de granada e de resgate de feridos, tiros com , corridas, stand up paddle e mergulho. Blaz as relacionou à doutrina do Bope.

— Antes de falarmos da parte prática, vamos falar da parte mental — justificou.

Ele esclareceu o significado da caveira para o Bope, necessário depois que uma participante, ao ser indagada, responder que ela simbolizava a “morte”. A “faca na caveira” do Bope, explicou o major, é inspirada no esquadrão inglês que na Segunda Guerra explodia indústrias de combustível nazistas para retardar o avanço das tropas. Seu símbolo, lembrou Blaz, era a faca na caveira:

— Logo de cara, a caveira simboliza a morte, mas para as Operações Especiais a caveira simboliza um obstáculo a ser vencido. Hoje, todo mundo que rala caramba e trabalha para o sustento de sua família é um “caveira”, uma pessoa que ali comprometida com a vitória.

Eram tantas referências à tropa que mais pareciam mensagens motivacionais de uma dinâmica corporativa. Um dos slides mostrava dois agentes com fuzis apontados na formação “high-low”, quando um soldado dá cobertura para outro durante uma operação. Para Blaz, uma “formação de ataque em que você duplica seu poder de fogo”. Depois, chamou quatro duplas de participantes — entre eles, eu — para reproduzi-la no palco. Com os braços, simulamos um fuzil apontado para a plateia.

— Se o combatente chega sozinho nesse beco, ele sente medo, dúvida, fica preocupado. Tudo o que ele quer ouvir ali, sabem o que é? — perguntou Blaz, que respondeu: —Ele quer ver um companheiro chegando por trás dele e falando: “juntos”.

Por vezes, o major ironizava as reportagens do GLOBO e do “Extra” sobre o curso oferecido. Após a reportagem, publicada na semana passada, a assessoria de imprensa da PM informou que a Corregedoria iria investigar para saber se o pacote de turismo de experiência, explorando o Bope, poderia configurar algum desvio de conduta. Também está sendo apurado se a empresa que vende a atração é de Blaz e de Luciano Pedro. Pelo regulamento da instituição, eles não podem ser sócios-gerentes de firmas.

Quando fui enviada ao treinamento, esperava instrutores berrando até que alguém “pedisse pra sair”, sob chacotas destiladas contra o “desertor”. Não foi assim. Com um público familiar, os instrutores aliviaram a carga sobre os “zero uns” e diziam que era para respeitarmos nossas limitações físicas.

Após a palestra, fomos divididos em grupos. O meu, batizado de “caveira”, era comandado por um homem de meia-idade, entusiasmado com a ideia de hierarquia militar. Ele propôs que nos identificássemos por números: 01, 02, e assim por diante. Nos sentimos verdadeiros soldados. Ele puxava o grito de guerra. Dizia “operações” e nós respondíamos “especiais”, igualzinho como ao filme “Tropa de Elite”. Pintamos o rosto com as mãos, o que era chamado de “camuflagem”.

Ao longo das provas, a sensação de um do Bope foi dando lugar a de uma gincana. Escalamos uma estrutura metálica montada sobre a piscina, enquanto crianças brincavam em volta, e depois subimos e descemos um muro abaixados, pois senão seríamos atingidos por tiros. Imaginários, . Um casal com roupas sociais filmava e tirava fotos. Eram promotores do Ministério Público, que abriu um inquérito para investigar o caso.

Um instrutor, usando cinto com brasão da Polícia Militar, nos brindava com autoajuda policial. Enquanto fazíamos um percurso de olhos vendados, ele repetia que devíamos seguir o líder (ele) que “sempre sabe o que é melhor para sua tropa", ainda que a vida nos confrontasse com incertezas como “a escuridão”, aquela que experimentávamos há alguns minutos. Na corrida pela areia, um sargento do Bope se vangloriou:

— Vocês vão correr aqui com uma blusa leve. Na comunidade, corro com colete, rádio e 15 quilos de armamento. Ando com dois estojos de munição. Às vezes, ainda levo o peso de um companheiro ferido.

A última etapa era a mais esperada: o stand de tiro. Usamos armas de , autorizadas no país. Aparentemente, a maioria estava mais interessada na foto que faria depois com o fuzil nas mãos do que com a pontaria. Mas a aula seguia. “Placa baleada”, repetia o instrutor, é hora de “avançar no território”. Um participante não resistiu e fez piada:

— Esse foi vala — referindo-se a uma suposta morte em confronto.

Dia encerrado. Depois do jantar, havia uma festa de premiação, com música e luzes de balada. Egypcio, ex-vocalista do Tihuana, interpretou a música tema de “Tropa de Elite", para o delírio dos fãs do Bope que pagaram ao menos R$ 1 mil para estar ali. Procurado, Blaz disse que foram “ações lúdicas e recreativas”.


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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