No protesto das iranianas, muito mais do que o fim do véu
BERLIM — Quatro décadas depois da revolução dos aiatolás, o Irã vive uma onda silenciosa de protestos. Mulheres, muitas vezes sozinhas, retiram o véu em locais públicos, agitando-o em desafio à regra imposta pelo regime islâmico. No gesto há muito mais do que apenas o desejo de abolir a obrigatoriedade do hijab, como explica Shirin Ebadi, prêmio Nobel da Paz de 2003.
— O que elas querem não é só andar com a cabeça descoberta, mas sim direitos iguais perante a lei. Desde 1979, uma mulher no Irã vale apenas a metade do que vale um homem — diz Ebadi, que vê o movimento como político e com a possibilidade de pressionar o regime por reformas.
Por trás dos protestos, está uma geração de mulheres nascidas depois da revolução de 1979. As manifestações, que começaram na Rua da Revolução, em Teerã, onde a ativista Vida Movahed usou seu lenço como bandeira, espalharam-se pelo país, apesar da reação das autoridades de mandar dezenas para a prisão.
— As últimas semanas mostraram que somos capazes de tornar em pouco tempo um movimento conhecido no mundo todo. Somos vistas pelo regime como ameaça. E não vamos parar — garante, por telefone, a ativista Shirin Najali, de 39 anos.
O movimento contagiou também as iranianas que vivem na Europa, como ressalta a ativista feminista Mina Ahadi.
— Essa onda não é uma iniciativa dos políticos, mas vem das mulheres, do povo, quer dizer, é uma ameaça real para o regime — acredita Mina, de 60 anos, que fugiu para a Europa depois que seu marido foi executado.
Mina, que mora na Alemanha, diz observar em seu país de origem uma disposição cada vez menor para obedecer determinadas leis cujo o cumprimento é fiscalizado pela polícia religiosa.
A nova geração de dissidentes defende aspectos considerados banais no Ocidente, como se sentar em um bar e tomar uma cerveja (algo proibido também aos homens). “Quando quero uma cerveja, preciso viajar à Turquia”, registrou a feminista Jina Khayyer, autora de um livro sobre como é a vida de uma mulher no Irã.
— Fui forçada a usar o lenço por causa da minha família — conta Liela Mir Khafari, uma cabeleireira de Teerã, de 36 anos. — O regime deveria dar mais direitos às mulheres e deixar cada uma decidir o que quer.
Liela não usa só o lenço. Quando sai com os pais, veste também o chador preto, que cobre o corpo todo. Ela vê com desconfiança a disputa entre conservadores e reformistas:
— Isso não passa de um jogo entre a liderança da República islâmica, militares e guardiões da revolução, e nenhum deles quer melhorar a situação da mulher.
Além do direito de descobrir a cabeça em público, as manifestantes exigem também o fim de leis como a que permite a um homem ter quatro esposas e a que manda para a cadeia a mulher que cometer adultério (até há alguns anos, a punição era o apedrejamento), bem como o direito de saírem sozinhas.
Sepideh Jandaghi, cantora de música popular iraniana, contou à ONG de direitos humanos Girls of Revolution que foi proibida de cantar sozinha no palco: ela só pode se apresentar em duo com um homem.
Bijan Jafari, porta-voz da comunidade dos iranianos na Alemanha, vê a crise econômica como um fator importante para o aumento da insatisfação.
— O desemprego é grande, os salários são baixos e o custo de vida é altíssimo, e isso aumenta o grau de insatisfação das mulheres — disse Jafari.
Ativistas iranianos no país e na Europa observam que a insatisfação das mulheres e dos homens, sobretudo dos jovens, está evoluindo para uma mistura explosiva. Mas os mais velhos, como Ebadi, que acompanharam desde o início o que a Revolução Islâmica significou para os direitos das mulheres, creem ainda nas reformas como a única possibilidade de o regime sobreviver a longo prazo.
— Já em 1979 protestávamos contra a obrigação do lenço — disse Ebadi, que vive na Europa.
Hoje, a revolta das mulheres começa, aos poucos, a encontrar ressonância em toda a sociedade iraniana.
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