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Médicos temem coronavírus na Venezuela, onde falta até água e sabão nos hospitais

Por Folha de São Paulo

17/03/2020 20h31 — em
Mundo



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em meio à pandemia de coronavírus, as recomendações de lavar as mãos com água e sabão para reduzir a chance de contágio são amplamente repetidas no mundo todo. Mas na Venezuela, onde muitos hospitais passam a maior parte do tempo sem abastecimento de água e sem suprimentos tão básicos quanto sabão, isso nem sempre é uma opção.

Médicos venezuelanos estão alarmados com a chegada do vírus ao país, que há anos passa por uma forte crise política e econômica que deixou o sistema de saúde em estado crítico. Desde sexta-feira (13), foram registrados 33 casos da doença, sem mortes. O ditador Nicolás Maduro suspendeu voos internacionais e ordenou uma quarentena geral a partir desta terça (17).

Ele também pediu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) uma ajuda de US$ 5 bilhões (R$ 25 bilhões) para lidar com o coronavírus. A última vez que o país tinha pedido recursos ao FMI foi em 2001.

Jan Egeland, secretário-geral do Conselho Norueguês para os Refugiados, prevê um desastre. "Haverá uma catástrofe quando o vírus chegar às regiões da Síria, Iêmen e Venezuela, onde os hospitais foram destruídos e os sistemas de saúde entraram em colapso", afirmou.

Segundo especialistas entrevistados pela reportagem, a população está especialmente vulnerável porque está desnutrida e, com isso, mais suscetível a contrair a doença e a manifestá-la na forma grave.

Eles também lembram que o êxodo que espalhou mais de 5 milhões de venezuelanos pelo mundo, especialmente adultos jovens, deixou no país especialmente crianças e idosos, e esse último grupo é o de maior risco.

Citam, ainda, a falta de leitos de UTI e de energia para manter os equipamentos de terapia intensiva funcionando. Com esse quadro, alguns temem que a porcentagem de mortes em relação ao total de afetados possa ser maior do que em outros países.

Outro problema, afirmam, é que não confiam nas estatísticas informadas por Maduro, que vem sendo criticado por organizações nacionais e internacionais pela falta de transparência na divulgação de dados públicos.

Segundo a Federação Médica Venezuelana (FMV), somente 73 leitos de terapia intensiva estão funcionando hoje na Venezuela --sendo apenas 19 deles no setor público. A entidade afirma que seriam necessários ao menos 3.000 leitos para enfrentar a pandemia de coronavírus.

"Muitos pacientes precisam de ventilação mecânica, mas sem esses leitos não temos como oxigená-los", diz o presidente da FMV, Douglas León Natera, acrescentando que os centros de saúde venezuelanos têm apenas 3% a 5% dos insumos necessários para funcionar.

"Os hospitais estão completamente desabastecidos. Faltam remédios, equipamentos médicos, aparelhos de radiologia convencional. Antes já era difícil. Agora, com a chegada desse vírus mortal sem que a gente possa adotar medidas preventivas, vai ser pior", afirma.

Segundo Natera, alguns hospitais ficam quatro dias da semana sem água, e há regiões do país sem luz há dez semanas. "O fornecimento é intermitente. Não temos água e sabão em um momento em que o principal elemento para eliminar o vírus é água e sabão. Imagine", afirma, listando também uma série de hospitais considerados de referência que não têm nem produtos para esterilizar equipamentos.

A falta de máscaras protetoras é outro problema apontado por ele. "Nós, médicos e enfermeiros, acabamos usando uma bem simples, um paninho, não é aquela de máxima segurança indicada para profissionais de saúde."

De acordo com uma pesquisa da ONG Médicos pela Saúde, 53% dos hospitais venezuelanos não tinham máscaras no início de março. A mesma fonte afirma que 90% careciam de um protocolo para o coronavírus.

Médico sanitarista, toxicologista e deputado de oposição a Maduro, José Trujillo afirma que há apenas 300 kits para testes rápidos que diagnosticam a Covid-19 no país, todos em Caracas.

Ele diz também que pesquisas em hospitais mostram que 80% não têm água. Sobre terapia intensiva, afirma que em seu estado, Aragua, só dois leitos estão funcionando. "Tem mais opções em hospitais privados, mas o preço é impagável."

Trujillo lamenta que o regime não divulgue, há anos, um boletim epidemiológico, instrumento de monitoramento de surtos e doenças com potencial de desencadear emergências de saúde pública. "O método científico para monitorar epidemias é o boletim. Mas aqui não temos, não sabemos onde estão ocorrendo os casos, cifras de doenças respiratórias prévias, se o governo fala a verdade ou não."

Ele lembra ainda que a diáspora deixou no país uma grande porcentagem de idosos. "A população venezuelana hoje são avós cuidando de netos. Os jovens foram embora."

Afirma, ainda, que se preocupa com esses migrantes, que na maioria das vezes sobrevivem do mercado informal nos países de destino. "Quando as pessoas fazem quarentena, eles deixam de vender e de conseguir se manter."

O reaparecimento em aglomerações urbanas de doenças como tuberculose, que antes ficava restrita à área rural, também é apontado por ele como fator de risco para a população durante a circulação do coronavírus. "Nossa única vantagem é que Deus é venezuelano", brinca. "Porque estamos na mão de Deus."

Membro fundador da Sociedade de Infectologia da Venezuela, o pediatra Juan Félix García também acredita que o país não esteja preparado para o coronavírus. "Há uma lista de itens que faltam nos nossos hospitais. Insumos, medicamentos, testes de laboratório."

Segundo uma pesquisa feita por três universidades venezuelanas, 80% da população tem algum grau de desnutrição e perdeu, em média, 11 kg em um ano. "Uma pessoa desnutrida é uma pessoa imunodeprimida. Seu sistema imunológico não funciona bem", diz o pediatra.

Ele defende que a quarentena obrigatória foi uma medida correta, apesar de ter ocorrido "um pouco depois do recomendado". "Temos que adotar medidas duras, como estão fazendo. Crianças não podem ir para a escola, adultos não podem ir para a igreja. Cinemas e restaurantes têm mesmo que fechar."

Ao anunciar a medida, Maduro disse se inspirar na China, um de seus principais aliados comerciais. "A Venezuela dá um passo à frente e declara quarentena total, medida drástica necessária."

Ele designou 46 hospitais para atender os casos da Covid-19 e os deixou sob supervisão militar.As aulas foram interrompidas e a população, forçada a ficar em casa, exceto por atividades consideradas essenciais.

Por sua vez, o governo do autoproclamado presidente Juan Guaidó, que disputa o poder com Maduro e foi reconhecido por mais de 50 países, anunciou medidas próprias de combate ao vírus. Entre elas, a retomada de pedidos de ajuda humanitária internacional para o país.


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