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Série sobre Kevin Spacey é desserviço e puro sensacionalismo

Por Folha de São Paulo

23/05/2024 13h48 — em
Arte e Cultura



FOLHAPRESS - Não há nada errado, em princípio, na realização de um documentário de acusação. O problema é que precisa ser bem pensado, caso contrário vira um testemunho de defesa involuntário.

É precisamente o que acontece com a série de dois episódios "Kevin Spacey: A História Não Contada", de Katherine Haywood, que em alguns momentos parece ter sido encomendada e produzida para colocar a causa contra o assédio sexual no ridículo.

Este texto não contempla os aspectos jurídicos do caso, se foi justo ou não o julgamento que inocentou o ator de todas as acusações. Assumimos ignorância nessas questões. É uma análise da série e de como sua feitura incide num julgamento superficial das atitudes do ator.

O maior problema é o que determina sua estrutura, baseada no depoimento de atores que tiveram contato com o astro no início de suas carreiras e sofreram assédio sexual, mas não foram ouvidos no julgamento.

A série contempla o medo do que os aconteceria se eles abrissem a boca enfrentando um poderoso de Hollywood. Poderiam ter saído da sombra quando fariam alguma diferença, não para um documentário que transpira sensacionalismo em cada imagem.

Esses assédios remontam ao início da carreira de Spacey. O mais antigo dos entrevistados até imagina que ele deve ter ficado bem pior, se antes de ganhar poder já era assediador. A série vai mostrar que sim, ficou pior.

Os assédios passam, especialmente, pelo elenco e estudantes do teatro londrino The Old Vic, que Spacey dirigiu a partir de 2003, e pelo elenco da série "House of Cards", onde o ator era majestade entre 2013 e 2017.

É compreensível e humano o medo. Mas o filme procura exacerbá-lo com uma trilha sonora calcada em obviedades, subindo o tom nos momentos em que deseja nos sensibilizar. Algo que um diretor de melodramas costuma fazer com maior habilidade.

Vejamos o caso do ator Scott Levy, um dos entrevistados. Em certo momento, ele se levanta, pois aparentemente houve um corte e ele poderia respirar. Mas esse corte não aconteceu, então o vemos se afastando, praguejando como se estivesse revivendo um trauma.

Mesmo descontando que o brasileiro é muito mais do toque e do abraço que o norte-americano, é meio constrangedor ver um homem tão forte, que já havia sido fuzileiro naval, tratado pela série como uma vítima indefesa.

Tecnicamente, ele foi uma vítima. Mas jamais indefesa. Era necessário bom senso para deixar isso claro e não jogar no ralo o trabalho sério de organizações como o MeToo, entre outras, que trabalham prioritariamente com vítimas de maior dificuldade para serem ouvidas, mulheres que são sempre inferiorizadas nas relações de poder.

O ator teve uma atuação convincente, não uma reação convincente. Essa atuação transforma momentaneamente a série num falso documentário. "Eu não quero que isso seja uma coisa de vítima", o ator fala, supostamente sem saber que essa fala entraria no filme.

Não há acerto possível aí. Se ele não sabia, o filme o manipulou, transformando-o em vítima novamente. Se ele sabia, aceitou a farsa e ajudou a manipular o público.

Em outro momento, a série entrevista um ator apresentado como Daniel, que participou de "House of Cards". Esse ator recebe a visita de uma companheira de elenco, apresentada como Dawn. Quando ele conta para ela que foi apalpado, ela se escandaliza, e então ele pede que ela se levante, sugerindo que iria mostrar como foi.

Como assim? Ele iria fazer com uma mulher o mesmo que foi feito com ele e o traumatizou? A atriz logo se esquiva e pergunta se foi por trás ou pela frente a apalpada, ao que ele responde a segunda alternativa. Detalhes assim revelam a índole dos acusadores, não muito melhor que a do acusado.

De acordo com a série e o ator, não haveria problema se ele reproduzisse ali, na frente de uma câmera o que sofreu. Isso dá uma medida de que a série e ao menos esse entrevistado não são lá muito confiáveis.

Ao se preocupar demais em mostrar o astro com seus fantasmas, o pai nazista e o diabo a quatro, "Kevin Spacey: A História Não Contada" parece até um testemunho de defesa do réu, mais do que uma nova plataforma para prolongar seu cancelamento na indústria do entretenimento, como se ele nunca mais pudesse trabalhar.

Ou seja, como documentário, é quadrado ao extremo, sem qualquer traço de criatividade. Como veículo de acusação, é pior ainda, pois assume a manipulação e a falta de ética. É o tipo de "produto audiovisual" que presta um desserviço à luta contra o assédio nos ambientes de trabalho.


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