Vida em Gaza é 'comédia obscura', diz diretor que usa humor para retratar conflito
CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Em filmes como "Era Uma Vez no Oeste", faroeste de Sergio Leone, ou a dramédia "Era Uma Vez em... Hollywood", de Quentin Tarantino, histórias são contadas em tom fabuloso, como aventuras. E não é diferente com "Once Upon a Time in Gaza", ou era uma vez em Gaza, que estreou nesse 78º Festival de Cannes, fora da competição principal.
O novo filme dos irmãos gêmeos Arab e Tarzan Nasser, diretores do aclamado "Gaza Mon Amour", é ousado ao mostrar o clima de tensão e destruição na Faixa de Gaza pela lente da ficção, já que os documentários predominam na produção sobre o tema como é o caso de "Sem Chão", vencedor do Oscar. Os irmãos Nasser não só contam uma história original, como a preenchem de humor ácido.
Isso não significa, porém, que "Once Upon a Time in Gaza" não seja realista. "Nosso cinema é baseado nas nossas memórias. Os personagens são inspirados em pessoas vivas de nossa vida, com grandes sonhos e sem clichês", diz Arab, em entrevista no Palácio dos Festivais. Robusto, com olhos verde-esmeralda contornados por lápis preto e barba abundante, ele exala realeza, mas não relaxa o semblante.
"Não estamos criando. A vida em Gaza é uma comédia obscura", afirma, sobre o uso de humor para tratar do conflito. "Sonhávamos em fazer um faroeste em Gaza, porque é um lugar que as pessoas não conhecem. Nossos três personagens poderiam ser o bom, o mal e o vilão", diz, em referência a "O Bom, o Mau e o Vilão", outro faroeste de Leone. Mas a escalada do conflito apagou memórias e lugares. "É por isso que se chama Era uma Vez em Gaza. Tudo que existia, hoje não existe mais."
A piora do cenário é uma constante desde os anos 2000, segundo Arab. O filme se passa em 2007, quando a Faixa de Gaza ficou sob controle do Hamas e Israel iniciou seu cerco ao território. A narrativa conta a história de Osama, um traficante que usa seu bar como fachada para vender drogas. Seu restaurante é gerenciado por Yahya, jovem modesto e idealista que sonha com uma vida melhor.
A rotina dos dois, que já é comprometida pelo patrulhamento do Hamas nas ruas e pela ameaça constante de Israel, muda de vez quando um policial corrupto decide se apropriar do negócio de Osama. Concentrando-se no drama policial, o filme põe luz sobre os acontecimentos políticos da época e as violências cotidianas que aprisionam os palestinos.
O longa ainda usa gravações de Donald Trump, apesar de ter sido gravado em Gaza antes da eclosão da Guerra Israel-Hamas, em dezembro de 2023 e, portanto, antes do republicano assumir novamente a presidência dos Estados Unidos.
"Ele [Donald Trump] defende a solução da Riviera. Ele quer dispersar os palestinos, tirá-los de seu território e enviá-los para outros lugares. O mundo ainda quer decidir pelos palestinos como e onde eles devem viver", lamenta Arab. Em fevereiro, o presidente americano disse que quer transformar a Faixa de Gaza em um litoral turístico no Oriente Médio.
O presidente americano já falou sobre transformar Gaza na "Riviera do Oriente Médio", proposta que foi amplamente repudiada por implicar o deslocamento forçado de milhões de palestinos, o que constituiria um crime de guerra.
A estreia do filme acontece em uma edição especialmente política do Festival de Cannes. Além das diferentes críticas ao governo de Trump por parte de figurões de Hollywood, como Robert De Niro, Wes Anderson e Ari Aster, Juliette Binoche, presidente do júri deste ano, abriu o evento com uma manifestação de solidariedade a Fatma Hassouna, fotojornalista que deveria comparecer a Croisette neste ano mas morreu um mês antes após um ataque do exército israelense em Gaza.
Ter o filme exibido em Cannes, mais importante festival de cinema do mundo, não é exatamente uma vitória, dado o cenário trágico, mas é uma forma importante de reafirmar o direito dos palestinos para outros países, diz Arab. Mas ele continua esperando um posicionamento mais assertivo das nações. "Israel está destruindo Gaza, e o mundo está olhando. Ninguém diz que o genocídio deve parar, todos usam palavras tímidas, distantes de qualquer sentimento humanitário."

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