Ideias de Lélia Gonzalez inspiram festival dedicado a mulheres negras, em Brasília
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Intelectual e precursora do feminismo afro-latino-americano, Lélia Gonzalez foi uma das primeiras a pensar o Brasil a partir da experiência das mulheres negras. Enquanto viva, expôs como o racismo estrutura instituições, afetos e narrativas no país. Ao propor o conceito de "amefricanidade", afirmou o papel central das populações negras e indígenas na formação da América Latina ideia que inspira, há 18 anos, o festival Latinidades, realizado em Brasília.
A homenagem póstuma a Gonzalez é o ponto de partida do evento, que, até o próximo dia 31 de julho, oferece uma programação gratuita com nomes da música nacional, como Zezé Motta, Karol Conká, Luedji Luna e Larissa Luz. Há ainda atrações internacionais, como a britânica IAMDDB e a caribenha Nessa Preppy.
Realizado sob o tema "Mulheres Negras Movem o Mundo", o Latinidades ocupa diversos espaços da capital federal, como o Museu Nacional da República, o Sesc Taguatinga, o Teatro Galpão Hugo Rodas (antigo Funarte), além de escolas públicas e centros culturais em regiões periféricas do Distrito Federal.
"Lélia sempre inspirou os passos do Latinidades. Celebrar nossos 18 anos é afirmar um projeto político, poético e inovador de existência e resistência", diz Jaqueline Fernandes, idealizadora do festival e fundadora do Instituto Afrolatinas. Ela lembra que a história do evento começa em Planaltina, periferia do DF, onde nasceu e vive até hoje. "Brasília tem 64 anos, Planaltina tem quase 200. Começamos incomodadas com a ausência de mulheres negras nos palcos e criamos nossa própria plataforma para mudar essa cena."
Desde 2008, o Latinidades se consolidou como o maior festival de mulheres negras da América Latina e Caribe. Sua criação está ligada ao 25 de julho, Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, data instituída em 1992, mas até então pouco conhecida no Brasil. "Quisemos popularizar essa data e, ao mesmo tempo, mostrar os talentos e potências das mulheres negras do DF. Hoje, temos um festival que gerou uma cena própria e já formou gerações de agentes culturais pretos", afirma Fernandes.
A programação de 2025 reflete essa proposta abrangente. No dia 23, o Sesc Taguatinga abre a exposição "Alumbramento", com curadoria de Nathália Grilo, reunindo artistas negros e indígenas de todo o país. Em 25 de julho, acontece a Batalha Afrolatinas, com MCs mulheres de todas as regiões em duelo de rimas antirracistas. No dia seguinte, o Museu Nacional abriga a Feira do Empreendedorismo Negro, além de shows gratuitos de Luedji Luna, que inicia sua nova turnê, e Karol Conká, que celebra 25 anos de carreira.
Com equipe organizadora formada quase inteiramente por mulheres negras da coordenação à produção técnica, o festival oferece às colaboradoras programas de saúde mental, revezamento de jornadas e garantia de remuneração digna para todas. "Não temos trabalho voluntário. Ser radical, para nós, é garantir dignidade, não trabalhar de graça. O mercado já explora demais o trabalho das mulheres negras", diz Fernandes.
Em 2025, pela primeira vez, o festival conta com um patrocinador master, a Shell Brasil. Segundo a idealizadora do evento, o apoio veio sem interferência na curadoria ou nas ações. "A gente que já fez com nada, que já fez com o CPF comprometido, sabe fazer com pouco. Agora que temos um patrocínio robusto, conseguimos realizar o festival como foi pensado. Mas seguimos atentos: se algum dia um parceiro tentar interferir na nossa autonomia, não hesitaremos em recuar."
O Latinidades também se internacionalizou. Desde 2013, o festival articula ações com países das Américas, Europa e África, com parcerias institucionais e circulação de artistas. Em 2022, lançou o livro trilíngue "Memórias e Utopias de Mulheres Negras", que levou sua história a palcos da França, Canadá, Colômbia e Reino Unido. "Nós fazemos parte de uma diáspora. Onde houver uma mulher negra, o Latinidades pode estar", afirma Fernandes.
Com três exposições visuais, mostras de cinema, peças teatrais, oficinas formativas e ações em escolas públicas e penitenciárias femininas, o Latinidades 2025 se expande para além da Esplanada dos Ministérios. "O que acontece no Museu Nacional é só a ponta do iceberg. Passamos o ano todo nos territórios: Ceilândia, Varjão, Planaltina, sistema socioeducativo, escolas. Porque viemos da periferia."
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