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Han Kang fala sobre novo livro, ataques da direita na Coreia e Nobel de Literatura

Por Folha de São Paulo

21/08/2025 9h45 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em junho de 2014, Han Kang teve um sonho. Andava por uma planície cheia de neve, em meio a toras de árvores sem folhas. Atrás de cada uma, havia um túmulo. Então a água do mar começou a subir de repente, inundando seus pés, ameaçando as tumbas, afogando os mortos. Ela acordou.

A escritora coreana, que dez anos depois viria a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, sentiu que ali havia a semente de um livro. Anotou o sonho em duas páginas. Escreveu mais algumas, jogou fora. Começou de novo, chegou a 50 páginas, mas tudo foi para o lixo.

Só anos depois, quando a autora viajou para a ilha de Jeju —palco de um massacre de trabalhadores que se levantavam contra o governo da Coreia do Sul no fim da década de 1940, no qual ao menos 30 mil vidas foram ceifadas—, Han entendeu o que viu enquanto dormia.

"O trauma coletivo daquela ilha foi infundido em mim", conta a discreta autora de 54 anos, em entrevista exclusiva. "De repente, percebi que meu sonho estava conectado com aquilo. Então consegui escrever."

A inspiração virou "Sem Despedidas", sua obra mais recente, que saiu em 2021 e chega agora com tradução direta de Natália T. M. Okabayashi por sua casa brasileira, a Todavia.

A protagonista do romance —Kyung-ha, que tem a mesma visão da autora durante o sono— recebe de uma amiga hospitalizada, Inseon, a incumbência de cuidar de seu pássaro, que havia ficado sem ninguém na casa vazia dela em Jeju.

Após uma viagem tortuosa, a moça chega a uma casa tão impregnada de mistério quanto de memória —a mãe de Inseon foi testemunha da matança de rebeldes promovida pelo governo de direita logo antes da Guerra da Coreia. A estimativa é que cerca de um décimo da população da ilha tenha sido dizimada, incluindo familiares das mulheres fictícias do livro.

Numa história que borra cada vez mais fronteiras entre vida e morte, passado e presente, se desenrola a saga das personagens para descobrir o que houve com seus parentes. Ou melhor, com suas ossadas. "Confundo intencionalmente quem está morto e quem está vivo", diz a escritora. "Isso não importa. O mais importante é que estão todas conectadas."

O bastidor de como nasceu "Sem Despedidas" ilustra bem o processo criativo da primeira autora coreana a ganhar o maior prêmio da literatura mundial. No discurso de aceite, em dezembro, Han afirmou que gosta de escrever romances porque ali pode "permanecer o tempo necessário para fazer perguntas importantes e urgentes". Tudo bem se levar um, dois, sete anos.

"Toda vez que escrevo um romance, enfrento essas perguntas e vivo dentro delas. Quando chego ao fim das questões —não quando encontro suas respostas—, concluo o livro."

É uma atitude de paciência e consideração típica de Han Kang —quando o Nobel foi anunciado, em outubro, não quis dar a tradicional entrevista coletiva à imprensa porque precisava de tempo para pensar o que o prêmio significava para ela. "Teria apenas alguns dias, e era rápido demais para mim", diz ela agora.

Mesmo diante do computador para conversar com a Folha de S.Paulo, numa videochamada em inglês, ela levou 13 segundos em silêncio antes de começar a responder à primeira questão. Era sobre as razões de preferir um estilo voltado para dentro, para a intimidade, ao abordar grandes traumas nacionais.

"Quero sentir que aquelas pessoas existem", respondeu, enfim. "Quero emprestar minha vida, minha carne, minhas sensações a elas. É um processo muito pessoal."

Quando fala sobre "Sem Despedidas", Han retorna com frequência a "Atos Humanos", livro publicado logo antes de ela ter aquele sonho de árvores e túmulos, demonstrando o processo orgânico que estrutura seu projeto literário.

Naquele romance, ela escreveu sobre outro episódio brutal, em 1980, quando o ditador Chun Doo-hwan mandou o Exército reprimir manifestantes pró-democracia na cidade de Gwangju, vitimando centenas de pessoas —principalmente jovens estudantes.

Han nasceu naquele lugar e, mesmo tendo se mudado ainda criança, afirma ter crescido com o imaginário do massacre. Estava "sempre às franjas dos meus pesadelos", diz. "Eu não achei que ia escrever um livro sobre Gwangju, porque sempre estive focada no interior das pessoas. Mas a vida é assim."

A autora era mais conhecida por "A Vegetariana", obra que venceu o prêmio Booker Internacional contando a espiral insana que toma a vida de uma mulher quando ela decide parar de comer carne. Mas a definição de Han para o livro é melhor. "É sobre uma mulher que recusa a violência de uma maneira perfeccionista. Até chegar a um estado que é irreconciliável com o mundo."

A dificuldade de comer aparece nos outros romances, sempre como um desconforto existencial que se manifesta em engulhos físicos. "Minhas personagens não conciliam nem concedem fácil ao mundo. É seu jeito de lutar", diz, em tom de voz ainda mais baixo que o habitual.

Han acabou celebrada como uma escritora de pendor político. Mas concorda, com o entusiasmo juvenil que sua timidez permite, quando ouve que essa postura surge mais do relato de suas ruminações internas que do desejo de se tornar uma figura política vocal. "É isso mesmo. Às vezes você não consegue distinguir o que é político do que é pessoal."

Não importa muito para quem vê de fora. Durante o governo da conservadora Park Geun-hye, de 2013 a 2017, sua obra foi incluída numa lista de autores vetados, que não podiam receber recursos públicos. "Quando terminei o livro, podia esperar reação das pessoas à direita. Elas não falavam a verdade sobre o massacre. Com certeza não iam gostar. E conforme a recepção do livro aumentou, a direita começou a me atacar mais."

Mas há o outro lado. Nos protestos no começo deste ano contra a lei marcial que o então presidente Yoon Suk Yeol tentou impor ao país —ele depois sofreu impeachment, em abril—, Han conta que viu pessoas levando seus livros às manifestações. "Eram pessoas que levantavam sua voz contra a violência, contra voltar ao passado. Uma mulher envolveu ‘Atos Humanos’ em luzinhas brilhantes de Natal. Fiquei comovida."

Foi meses depois de Han ser celebrada com um Nobel inédito para seu país. Quando o repórter pergunta se a escolha aponta para uma mudança na geopolítica da cultura, já que o prêmio europeu costuma olhar pouco além de suas fronteiras, ela assente, gentil. Depois oferece uma resposta que só poderia sair de sua boca.

"Em ‘Sem Despedidas’, escrevo sobre uma corrente que nos conecta a todos, um fluxo de água que circula por baixo da terra. Ontem choveu aqui em Seul. Talvez essa chuva seja a mesma água que molha São Paulo. Talvez estivesse nos rios do Brasil. A literatura não é nacionalidade, nem mesmo linguagem. É essa conexão."

SEM DESPEDIDAS

- Preço R$ 84,90 (272 págs.); R$ 59,90 (ebook)

- Autoria Han Kang

- Editora Todavia

- Tradução Natália T. M. Okabayashi


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