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Férias escolares longas na Itália expõem desigualdades e apego a tradições

Por Folha de São Paulo

02/07/2022 9h05 — em
Mundo



MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - No mês de maio começa a agitação entre mães e pais na Itália, que se perguntam o que fazer com os filhos durante os três meses de férias escolares de verão, entre junho e setembro no hemisfério norte.

Há famílias que podem contar com a casa dos avós, outras que recorrem a cursos pagos. E, todo ano, há quem levante a polêmica: por que a Itália ainda é um dos poucos países na região a ter férias tão longas?

Com 13 ou 14 semanas de pausa para os estudantes do ensino primário e secundário (equivalentes ao fundamental no Brasil), a Itália é um dos cinco países da União Europeia com período de férias superior a 12 semanas. Entre as maiores economias do bloco (Alemanha, França, Itália, Espanha e Holanda), a única. Nesse grupo, chama a atenção a assimetria com alemães e holandeses, que param por seis semanas.

Não que os italianos estudem menos. O calendário escolar no país, ao lado do da Dinamarca, é aquele que tem mais dias letivos, 200 por ano. A diferença é que os outros espalham pausas menores ao longo do ano, sem concentrar quase tudo no verão. Como acontece na rede estadual de São Paulo, que também tem 200 dias letivos, uma pausa de seis semanas no verão, outra menor no inverno e recessos no outono e na primavera. Um modelo que, segundo economistas, traz mais benefícios a estudantes e famílias.

Estudos de referência do fenômeno "summer learning loss" (perda de aprendizado no verão) vêm dos Estados Unidos, onde há entre 10 e 11 semanas de pausa no verão. Publicada em 2020 no American Educational Research Journal, uma pesquisa dedicada a entender o efeito da pausa de verão na desigualdade de desempenho escolar concluiu que, entre a primeira e a oitava série, um aluno, em geral, perde de 17% a 34% dos ganhos de aprendizado do ano durante as férias.

"A pausa longa do verão deteriora o processo de aprendizado dos estudantes em todos os níveis escolares", diz à Folha de S.Paulo Giuseppe Sorrenti, professor de microeconomia da Universidade de Amsterdã. Segundo ele, enquanto os menores tendem a ter um achatamento da curva de aprendizado, os adolescentes sofrem uma queda, perdendo habilidades cognitivas, medidas em matemática e língua.

O efeito tende a ser maior nas classes sociais mais pobres, em que as famílias têm menos recursos e tempo disponível para os filhos. Em Milão, no norte da Itália, a região mais industrializada e rica do país, uma semana de curso de verão, em que a criança passa oito horas diárias, pode custar entre 40 euros e 350 euros (entre R$ 221 e R$ 1.930). As atividades vão desde imersão em idiomas estrangeiros e esportes até laboratórios recreativos em teatros e museus. As opções oferecidas pelas prefeituras ou pelas paróquias católicas, gratuitas ou com preços mais acessíveis, têm vagas limitadas e disputadíssimas.

"É fácil deduzir que uma família com mais recursos vai conseguir substituir a escola por atividades que também possam ser formativas", afirma Sorrenti. "Esse efeito foi observado durante o fechamento das escolas na pandemia. Os filhos das famílias mais ricas tiveram baixo impacto nas habilidades cognitivas, porque contaram, por exemplo, com professores particulares e pais com mais tempo disponível."

As férias longas também incidem sobre uma deficiência histórica do país: a desigualdade de gênero. Entre os 27 membros da União Europeia, a Itália tem a pior disparidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, uma distância de quase 20 pontos percentuais. Segundo dados de 2020 do Eurostat, só metade das mulheres entre 20 e 64 anos trabalha, a segunda menor taxa do grupo, à frente apenas da Grécia.

No país, prevalece a ideia de que a mãe é a principal responsável pelo desenvolvimento dos filhos, o que, de acordo com especialistas, representa um obstáculo no acesso delas ao mercado de trabalho, com baixa oferta, muitas do tipo meio período e com salários menores. Para Francesca Fiore, coautora do blog Mamma di Merda, que discute temas feministas, "as próprias mulheres muitas vezes escolhem trabalhos com horários reduzidos, em geral com salários menores, porque assim conseguem fazer o outro trabalho, o de cuidar de graça da família". Ela é mãe de duas filhas, que passam parte das férias com os avós.

Há poucas semanas, um post publicado pelo blog no Instagram chamou a atenção para a falta de atividades de verão para crianças com deficiências. Muitas seguidoras apontaram a necessidade de reforma do calendário escolar, mas o tema é controverso entre famílias e sindicatos, e iniciativas vindas da classe política, como em 2013, por meio do então premiê, Mario Monti, rapidamente fracassaram.

Entre as justificativas contrárias à diminuição da pausa de verão estão a falta de infraestrutura dos prédios escolares para aulas durante o período de calor e os baixos salários dos professores. "A escola não é um estacionamento de filhos" é um argumento frequente de quem se opõe a mudanças.

A origem do calendário escolar italiano é de 1859, quando a Lei Casati implementou o ensino primário obrigatório em todo o país, para reduzir o analfabetismo. As longas férias de verão foram uma solução para que filhos de agricultores pudessem frequentar a escola sem deixar de trabalhar na colheita do trigo, ainda hoje o principal produto agrícola do país. "É um calendário completamente anacrônico", avalia Fiore.

Tanto para ela quanto para o economista Sorrenti, a explicação para a resistência a alterações tem base cultural. "Estamos falando de uma tradição centenária, dos papéis do homem e da mulher, tudo isso em um país com forte marca religiosa. Vejo avanços nesse debate, mas mudar requer tempo", diz Sorrenti.

Fiore observa o aumento da conscientização sobre a paridade de gêneros nos últimos anos, ao mesmo tempo em que um dado chama a atenção. "Na Itália, paramos de fazer filhos, vivemos em desnatalidade. É um protesto silencioso muito forte." Em 2021, o país teve a menor taxa de nascimentos da sua história.

AS FÉRIAS ESCOLARES NA UNIÃO EUROPEIA

Número de semanas de pausa da educação primária e secundária durante o verão

Alemanha 6 semanas

Áustria 9 semanas

Bélgica 9 semanas

Bulgária 11 a 15 semanas

Chipre 9 a 12 semanas

Croácia 10 semanas

Dinamarca 6 semanas

Eslováquia 9 semanas

Eslovênia 10 semanas

Espanha 11 semanas

Estônia 12 semanas

Finlândia 10 a 11 semanas

França 8 semanas

Grécia 10 a 12 semanas

Holanda 6 semanas

Hungria 11 semanas

Irlanda 9 a 12 semanas

Itália 13 a 14 semanas*

Letônia 13 semanas

Lituânia 12 semanas

Luxemburgo 8 semanas

Malta 13 semanas

Polônia 9 semanas

Portugal 11 a 14 semanas

República Tcheca 9 semanas

Romênia 12 semanas

Suécia 10 semanas

* A província autônoma de Bolzano tem 11 semanas

Fonte: Relatório Eurydice 2021-2022, da Agência Executiva Europeia de Educação e Cultura


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