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Espionagem: "Nessa questão ninguém é santo"


Por Elizabeth Menezes

24/10/2023 8h12 — em
Ombudsman



Sistema de rastreamento, também chamado de “software espião”, investigado pela Polícia Federal, foi adquirido por, pelo menos, nove secretarias de segurança pública de estados. Amazonas entre eles. Contratos estimados em R$ 66 milhões, conforme se pode ler na  reportagem da GloboNews, desta segunda-feira 23, que também informa: fez um levantamento nos últimos cinco anos sobre “compras de equipamentos de rastreamento, interceptação e bloqueio de sinal de celulares”. Contratos com a empresa Cognyte (antiga Suntech), “a maior parte deles feitos com dispensa de licitação, como os estados de Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso e São Paulo”. 

Quanto ao Amazonas, em 2022 a Polícia Civil firmou um contrato de R$ 5.998.406,93 para a "aquisição do equipamento satelital para identificação, rastreamento, monitoramento e interceptação de indivíduos em atividades relacionadas ao tráfico de drogas em ambiente urbano e florestal". Sobre essa informação, o governo explicou, em nota:  a Polícia Civil do Amazonas não adquiriu a ferramenta FirstMile. Em julho de 2022, firmou contrato com a empresa Cognyte Brasil S.A, “que oferece outros tipos de soluções tecnológicas para o combate ao crime organizado”. 

Diz mais: "O contrato foi firmado em julho de 2022, com vigência de 12 meses, a partir da entrega do sistema, e está amparado legalmente pela Procuradoria Geral do Estado (PGE-AM)”. Ainda de acordo com a nota, “a solução adquirida pelo Amazonas é legal, auditável e seu uso controlado. Outras informações sobre o instrumento são reservadas às autoridades de Segurança Pública, conforme determinam os termos da lei do Crime Organizado.".

A reportagem também esclarece que o objetivo da compra de tais equipamentos da Cognyte é fazer “identificação, rastreamento, monitoramento e interceptação telemática e telefônica, além de bloqueio de sinal de celulares, soluções de tecnologia da informação e prestação de suporte técnico e manutenção da plataforma de busca de dados em fontes abertas”. Serviços legais, desde que tenham autorização judicial. Acontece que a Cognyte também fornece o programa FirstMile, considerado um sistema espião que monitora a localização de celulares. 

Na sexta-feira 20, a PF prendeu dois servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência): há suspeita de que o equipamento tenha sido usado no governo Jair Bolsonaro, “de maneira ilegal, sem autorização da Justiça, para invadir a rede de telefonia e monitorar a localização de pessoas”. Na lista: servidores públicos, políticos, policiais, advogados, jornalistas, juízes e até ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e TSE (Tribunal Superior Eleitoral). 

Em resposta à reportagem da GloboNews, os governos citados garantiram que os equipamentos são utilizados no combate aos diversos crimes, mas de acordo com a lei. Espírito Santo, por exemplo, informou que as “operações de inteligência são realizadas mediante a supervisão do Ministério Público”. O assunto é dos mais comentados nos meios de comunicação. O jornalista Glenn Greenwald seria um dos alvos identificados na lista de espionados: seu telefone teria sido rastreado pelo sistema FirstMile. Juízes já se manifestaram. Por meio de nota, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) disse esperar “que as autoridades competentes apurem o ocorrido e que os responsáveis sejam efetivamente punidos, em conformidade com a legislação em vigor" .

Na coluna Bastidores da Política, o diretor-geral deste portal, Raimundo de Holanda, lembra que “há 20 anos no Amazonas já se falava em maletas israelenses em mãos de arapongas”. E trouxe informação mais recente: “Há um ano a Secretaria de Inteligência do Amazonas, que mantinha sob seu poder o Guardião, um aparelho de escuta com tecnologia israelense, foi alvo de uma operação do Gaeco, porque, entre outras coisas, os policiais utilizavam o equipamento para ouvir, monitorar, chantagear criminosos e obter parte do ouro roubado de terras indígenas”. 
Ele prossegue: “Na prática, esses aparelhos comprados sob o argumento de que seriam utilizados para combater o crime organizado, acabam servindo a interesses menores, políticos, pessoais, quando não de quadrilhas incrustadas no aparelho do Estado. Se há governos, como o do Amazonas, que alegam não possuir esses aparelhos, não basta dizer que não têm ou que não fazem mau uso deles. É preciso submetê-los a uma rigorosa auditoria – e isso vale para equipamentos em poder do Ministério Público e da Polícia Federal”.

Conclusão do texto: “Nessa questão de espionagem, ninguém é santo”. 

Espionagem é assunto que lembra cinema, James Bond e o seu consagrado 007. Lembra perigo, inteligência e disfarce, mas fica melhor na telona do que na vida real. No “filme” deste momento, pairam suspeitas sobre um ex-presidente do Brasil, diabruras para monitorar “inimigos”, que podem ser até jornalistas. E tudo seria de acordo com um órgão oficial cuja função “é investigar ameaças reais e potenciais, bem como identificar oportunidades de interesse da sociedade e do Estado brasileiro, e defender o estado democrático de direito e a soberania nacional” (criada no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999). Em que momento jornalistas representam “ameaças reais e potenciais” para o Brasil? Não. Não há nada divertido nesse “enredo”. 

Sobre a justificativa do governo do Amazonas, em relação ao contrato com a empresa Cognyte Brasil S.A, a nota afirma ter sido assinado em julho de 2022, com vigência de 12 meses. Sendo assim, o contrato não existe mais, uma vez que falta apenas uma semana para o mês de outubro acabar. Ou teve renovação do contrato? O governo precisa fazer esse esclarecimento. E algum jornalista terá de buscar essa simples informação. E muitas outras.
 
Com “guardião” ou sem “guardião”.

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Elizabeth Menezes, jornalista formada pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas), repórter em jornais de Manaus, a exemplo de A Notícia, A Crítica e Amazonas em Tempo. Também trabalhou na assessoria de Comunicação da Assembleia Legislativa.

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