Espionagem: "Nessa questão ninguém é santo"
Sistema de rastreamento, também chamado de “software espião”, investigado pela Polícia Federal, foi adquirido por, pelo menos, nove secretarias de segurança pública de estados. Amazonas entre eles. Contratos estimados em R$ 66 milhões, conforme se pode ler na reportagem da GloboNews, desta segunda-feira 23, que também informa: fez um levantamento nos últimos cinco anos sobre “compras de equipamentos de rastreamento, interceptação e bloqueio de sinal de celulares”. Contratos com a empresa Cognyte (antiga Suntech), “a maior parte deles feitos com dispensa de licitação, como os estados de Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso e São Paulo”.
Quanto ao Amazonas, em 2022 a Polícia Civil firmou um contrato de R$ 5.998.406,93 para a "aquisição do equipamento satelital para identificação, rastreamento, monitoramento e interceptação de indivíduos em atividades relacionadas ao tráfico de drogas em ambiente urbano e florestal". Sobre essa informação, o governo explicou, em nota: a Polícia Civil do Amazonas não adquiriu a ferramenta FirstMile. Em julho de 2022, firmou contrato com a empresa Cognyte Brasil S.A, “que oferece outros tipos de soluções tecnológicas para o combate ao crime organizado”.
Diz mais: "O contrato foi firmado em julho de 2022, com vigência de 12 meses, a partir da entrega do sistema, e está amparado legalmente pela Procuradoria Geral do Estado (PGE-AM)”. Ainda de acordo com a nota, “a solução adquirida pelo Amazonas é legal, auditável e seu uso controlado. Outras informações sobre o instrumento são reservadas às autoridades de Segurança Pública, conforme determinam os termos da lei do Crime Organizado.".
A reportagem também esclarece que o objetivo da compra de tais equipamentos da Cognyte é fazer “identificação, rastreamento, monitoramento e interceptação telemática e telefônica, além de bloqueio de sinal de celulares, soluções de tecnologia da informação e prestação de suporte técnico e manutenção da plataforma de busca de dados em fontes abertas”. Serviços legais, desde que tenham autorização judicial. Acontece que a Cognyte também fornece o programa FirstMile, considerado um sistema espião que monitora a localização de celulares.
Na sexta-feira 20, a PF prendeu dois servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência): há suspeita de que o equipamento tenha sido usado no governo Jair Bolsonaro, “de maneira ilegal, sem autorização da Justiça, para invadir a rede de telefonia e monitorar a localização de pessoas”. Na lista: servidores públicos, políticos, policiais, advogados, jornalistas, juízes e até ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Em resposta à reportagem da GloboNews, os governos citados garantiram que os equipamentos são utilizados no combate aos diversos crimes, mas de acordo com a lei. Espírito Santo, por exemplo, informou que as “operações de inteligência são realizadas mediante a supervisão do Ministério Público”. O assunto é dos mais comentados nos meios de comunicação. O jornalista Glenn Greenwald seria um dos alvos identificados na lista de espionados: seu telefone teria sido rastreado pelo sistema FirstMile. Juízes já se manifestaram. Por meio de nota, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) disse esperar “que as autoridades competentes apurem o ocorrido e que os responsáveis sejam efetivamente punidos, em conformidade com a legislação em vigor" .
Na coluna Bastidores da Política, o diretor-geral deste portal, Raimundo de Holanda, lembra que “há 20 anos no Amazonas já se falava em maletas israelenses em mãos de arapongas”. E trouxe informação mais recente: “Há um ano a Secretaria de Inteligência do Amazonas, que mantinha sob seu poder o Guardião, um aparelho de escuta com tecnologia israelense, foi alvo de uma operação do Gaeco, porque, entre outras coisas, os policiais utilizavam o equipamento para ouvir, monitorar, chantagear criminosos e obter parte do ouro roubado de terras indígenas”.
Ele prossegue: “Na prática, esses aparelhos comprados sob o argumento de que seriam utilizados para combater o crime organizado, acabam servindo a interesses menores, políticos, pessoais, quando não de quadrilhas incrustadas no aparelho do Estado. Se há governos, como o do Amazonas, que alegam não possuir esses aparelhos, não basta dizer que não têm ou que não fazem mau uso deles. É preciso submetê-los a uma rigorosa auditoria – e isso vale para equipamentos em poder do Ministério Público e da Polícia Federal”.
Conclusão do texto: “Nessa questão de espionagem, ninguém é santo”.
Espionagem é assunto que lembra cinema, James Bond e o seu consagrado 007. Lembra perigo, inteligência e disfarce, mas fica melhor na telona do que na vida real. No “filme” deste momento, pairam suspeitas sobre um ex-presidente do Brasil, diabruras para monitorar “inimigos”, que podem ser até jornalistas. E tudo seria de acordo com um órgão oficial cuja função “é investigar ameaças reais e potenciais, bem como identificar oportunidades de interesse da sociedade e do Estado brasileiro, e defender o estado democrático de direito e a soberania nacional” (criada no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999). Em que momento jornalistas representam “ameaças reais e potenciais” para o Brasil? Não. Não há nada divertido nesse “enredo”.
Sobre a justificativa do governo do Amazonas, em relação ao contrato com a empresa Cognyte Brasil S.A, a nota afirma ter sido assinado em julho de 2022, com vigência de 12 meses. Sendo assim, o contrato não existe mais, uma vez que falta apenas uma semana para o mês de outubro acabar. Ou teve renovação do contrato? O governo precisa fazer esse esclarecimento. E algum jornalista terá de buscar essa simples informação. E muitas outras.
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