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O TEMPO É UM LUGAR DENTRO DA GENTE


Por Flávio Lauria

30/12/2023 9h25 — em
Espaço Crítico



No silêncio da madrugada, o tique taque do relógio na parede é acompanhado do giro inexorável, mas visível, do ponteiro de segundos. As asas da imaginação trazem aviso de que cada suave batida do mecanismo denuncia um instante a menos, embora ínfimo, do tempo que nos resta de vida. Está findando o que era a pouco um Ano Novo. Não precisa chorar de arrependimento pelas besteiras consumadas, nem parvamente acreditar que, por decreto da esperança, a partir de Janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você tem que merecê-lo. Tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre. No ensejo da virada que se aguarda em regressiva contagem, uma questão não se ausenta enquanto os números voam – o que muda quando o ano não é mais o mesmo? O vento do tempo desbasta a tudo, mas de tudo que é lado sopra desconfiança sobre a natureza da conta que nos inventa, e ao mundo consome. Em dentadas vorazes ou pequenos goles... A sugestão alvoroça os consumidos à sombra da eternidade. Busca-se controle, no freio dos anos, acelerando os dias, dirigindo os ponteiros, na ordem do calendário. A utopia chama os mal-acostumados, quiçá encantados por um sorriso alheio que parece fora do tempo. A utopia chama os muito acostumados, de olhos fechados, longe do instante vivido. O desejo de alongar ad infinitum a delícia de um turbilhão num segundo escapa à nossa vontade. Somos esse desejo de pegar com as mãos o que passou e o que virá, quando quisermos, de dispor do tempo ao nosso prazer. Sonhamos dentro do tempo que nos abarca e, tão estranho, mora dentro de cada um de nós. Sentimos o movimento incessante para trás e para frente no rio temporal, ainda que viajemos com a impressão de não sairmos do canto. A imagem é vaga: um rio que nos leva a canto nenhum, como se fôssemos o próprio rio. Por outro lado, estar presentes, pensar o agora, é tão penoso quanto subir ou descer a correnteza de uma ilusão que nos planta, cria e mata. Para o viajante do tempo de H. G. Wells, as idades de um indivíduo são apenas cortes de um ser de quatro dimensões, cuja essência permanece do berço à morte. Cada idade é assim a representação de uma possibilidade – e cada data, um lugar em que se poderia “pousar” uma máquina do tempo. A fim de encobrir o pânico que nos conduz ao abismo onde o tempo não faz sentido, tratamos de contar e recontar o tempo para trás e para frente, armados de cronômetros, agendas e ritos – que funcionam como virtuais máquinas do tempo. O tempo real desafia a fantasia humana, deslumbrada com os ciclos que povoam o universo. Para nós, o tempo é “quântico”: inusitado, impossível, indeterminável. Com o tempo, a física vira poesia, é saudade e esperança, ansiedade e memória. Uma espécie de espaço? Pode ser. O tempo é um lugar dentro da gente. Lugar que se rearruma, se amplia – e não se reduz – no decurso de um ano a mais. Feliz 2024.

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