Direito do leitor fazer críticas: “você é míope”
Márcio tem 40 anos. Está desempregado há 6 meses e usou o celular para “fazer reparos” na coluna de ontem - “Amazonas, riqueza e miséria”. Ele começou perguntando em que mundo eu vivia e se era tão míope para não perceber que a própria PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, na qual se baseou a amostragem do Instituto Jones dos Santos Neves, podia ser falha ou manipulável. Escutei. Foi além. Contou sua história, tão familiar…
”Eu ia bem num emprego com salário razoável, quando fui despedido. Ficou difícil sustentar a família, manter o João na escola particular, pagar o aluguel do apartamento. A relação com a família se tornou um pesadelo. A mulher quis ir embora”. Foi quando sua voz deu lugar a um soluço. Eu, do outro lado, engasguei… Ele desligou… Mas retornei a ligação e falamos por 10 minutos.
Entendi que Márcio havia sido empurrado de uma faixa intermediária - a classe média - para a linha de pobreza e não sabia nem tinha meios de se recompor.
Fez uma crítica que discordo: que eu vivo a defender grupos privados, investimentos privados na região sem atentar que esses grupos econômicos contribuem para a concentração de renda e funcionam não como vetores do desenvolvimento, mas estimuladores de desigualdade, favorecendo uma parcela da população já cheia de privilégios.
Respondi que essa análise era linear, que havia outras consequências. Que investimentos privados alavancavam o desenvolvimento, geravam empregos e que o Estado arrecadava mais. Ele parecia tão decepcionado que falou um palavrão…
Tentei acalmá-lo, dizendo que ele talvez tivesse razão e que eu ia avaliar tudo o que havia dito. Agradeci. Prometi ajudá-lo. Pedi que enviasse um currículo.
Foi uma conversa difícil porque a história pessoal que ele contou tem muito com a história de meus pais. Sair de uma zona de conforto tão inesperadamente e descer para a base da pirâmide, com as agruras que ficam na memória mesmo quando se consegue superar: o fundo da panela com as marcas de uma colher que tentava retirar o alimento que não havia mais. O café feito com a borra do dia anterior, a escova de dente sem pasta e a leitura do que diziam os olhos de meu pai, tristes preocupados, distantes.
No seu silêncio, havia um, grito perceptível para nós, seus oito filhos: “o que eu vou fazer amanhã?”
Era um sentimento de dor e impotência, que nos perturbava - mais que a fome, que também falava…
Entendi na prática a intervenção de Márcio. Não é porque cerca de 2 milhões de amazonenses estejam na base da pirâmide, vivendo de bicos ou com o auxilio do governo que a outra metade usufrua de situação melhor. Não é bem assim.
O crescente desemprego tem empurrado parte da classe média para baixo. Famílias, como a de Márcio, que viviam de forma confortável, com apartamento alugado, filho na escola, um final de semana num restaurante de repente viram o mundo mudar, empurradas para baixo.
Márcio tem razão. A pobreza no Amazonas é maior do que o oficialmente revelado. E isso não vai mudar. Infelizmente… A concentração de renda nas mãos de poucos é um escárnio . E isso também não vai mudar. Infelizmente…
ASSUNTOS: Amazonas, Linha da Pobreza, Manaus, PNAD
Raimundo de Holanda é jornalista de Manaus. Passou pelo "O Jornal", "Jornal do Commercio", "A Notícia", "O Estado do Amazonas" e outros veículos de comunicação do Amazonas. Foi correspondente substituto do "Jornal do Brasil" em meados dos anos 80. Tem formação superior em Gestão Pública. Atualmente escreve a coluna Bastidores no Portal que leva seu nome.