Neguinho da Beija-Flor relembra infância em chiqueiro
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Neguinho da Beija-Flor, 76, já viu de tudo: da infância marcada pelo chiqueiro de porcos em que morou em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, ao posto de uma das vozes mais emblemáticas do Carnaval carioca. Agora, é a própria vida que ele assiste na tela, transformada em uma série de quatro episódios em que expõe, com a mesma sinceridade que marca sua trajetória, as dores e glórias de cinco décadas dedicadas ao samba.
No documentário "Neguinho da Beija-Flor - Soberano da Avenida", que pode ser visto no Globoplay, o cantor e compositor fala sobre racismo, fama, gratidão e escolhas -e afirma que, apesar de ter passado o microfone da Beija-Flor para a nova geração, está longe de encerrar sua história profissional.
Em entrevista à reportagem, ele se diz surpreso com ter virado tema de documentário, conta um episódio recente de preconceito que aconteceu com sua família e nega a possibilidade de se candidatar ao Senado pelo Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro. "Nunca tive intenção de ser político", afirma. Confira a entrevista abaixo.
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PERGUNTA - Como foi para você ver sua vida contada em uma série documental?
NEGUINHO DA BEIJA-FLOR - A emoção foi enorme. Eu nem achava que merecia uma homenagem daquele tamanho. O AfroReggae decidiu contar a minha história e fiquei maravilhado com tudo. Todo mundo está assistindo, e isso me deixa muito emocionado e surpreso -eu realmente não esperava.
P - E como é revisitar a própria história? A série mostra momentos alegres, mas também fortes e de superação.
NB - As pessoas acham que só existe a parte boa, mas eu contei tudo desde o começo. A série serve de incentivo para futuros Neguinhos, futuros Martinhos da Vila, futuros Chacal, futuros Pelés, futuros Garrinchas. Vale mostrar que não existe só o lado bonito da trajetória de um artista -é importante mostrar de onde você veio.
P - O que você deixou de fora do documentário?
NB - Nada. Contei tudo, lá do fundo mesmo: do chiqueiro de porco, da época em que zombavam de mim, dizendo que um negro feio como eu nunca seria famoso. Eu dizia que um dia ia aparecer na mídia, que teria foto com gente importante. Debochavam, falavam que eu seria famoso pelo lado ruim, que seria chefe do tráfico ou bandido. "Um crioulo feito você vai ser artista onde?", diziam. Eu insistia. Cheguei onde cheguei -e isso mostra para muita gente que não se pode desistir dos próprios sonhos.
P - De onde vinha essa certeza de que seria famoso?
NB - Eu me inspirei em muita gente. Já fui militar da Aeronáutica; o Martinho era do Exército. Se ele chegou, eu também poderia chegar. O Jamelão foi vendedor de jornal e virou embaixador do samba. Pensava: "Se eles chegaram, eu também posso". Vi uma oportunidade na música e fui com força. Dormia até em banheiro do Clube Renascença para esperar a hora de cantar. Cantava de graça para divulgar meu trabalho.
P - Qual foi o momento mais marcante da série para você?
NB - O momento do chiqueiro de porcos. Morei um tempo num espaço cedido por uma vizinha -era o que eu podia pagar [Neguinho se emociona]. As pessoas perguntam: "Como você tem coragem de contar isso?". Mas é a minha história. Ninguém acreditava em mim. Só o dono de um botequim acreditou: ele me emprestava o dinheiro da passagem para eu ir ao centro, a uns 50 km de Nova Iguaçu, para mostrar minhas músicas. Rever isso foi muito forte.
P - Ali você ainda era o Neguinho da Vala, seu primeiro nome artístico?
NB - Exato. Meu nome é Luiz Antônio, e ganhei esse apelido aos 7 anos porque morava num brejo, pegando peixinho, muçum e rã na vala. Fiquei com esse nome até os 25 anos, quando entrei para a Beija-Flor e adotei o nome da escola. Quando comecei a ficar conhecido, escondi o "Neguinho da Vala". Hoje tenho orgulho dele. Foi ele quem venceu primeiro -o da Beija-Flor veio depois.
P - Outro momento forte é seu relacionamento com Anízio Abraão David, presidente de honra da Beija-Flor...
NB - O Anízio é um anjo na minha vida. Acreditou em mim quando ninguém acreditava. Me apoiou em tudo, até na carreira internacional. Muitas vezes financiou minhas passagens para eu cantar na Itália, França, Portugal e Espanha -de graça- só para eu me tornar conhecido. A gratidão que tenho por ele não tem preço. Ele é meu amigo.
P - E como era ser amigo de um homem ligado à contravenção?
NB - No passado, tudo era mais repressivo. E eu botava a cara na época da prisão dele. Às vezes chegava de viagem e ia direto visitá-lo na cadeia, em Niterói. Ele tem um lugar importante na minha trajetória. "Ah, mas ele é contraventor?" O problema é dele. Se gostar do Anízio for motivo para ser preso, então tenho prisão perpétua.
P - Você disse que não se aposentou de fato. É isso mesmo?
NB - Sim. Fui infeliz quando disse que ia deixar os desfiles. Não devia ter dito que me aposentaria, e sim que estava passando o microfone da Beija-Flor para a nova geração, que um dia sonhou em ser o que eu fui na quadra e na Sapucaí. Foram 50 anos! Agora estou priorizando minha carreira de cantor de samba. Não é a carreira do Zeca nem do Martinho, mas exige atenção -e agora posso me dedicar.
P - Nessa época, as quadras fervem com os ensaios. Não sente saudade?
NB - Claro. A saudade sempre vai existir, porque são cinquenta anos de um casamento feliz. É difícil abrir mão de algo que te faz tão bem. Por enquanto, está tudo bem.
P - O documentário saiu no mês da Consciência Negra. O que essa data significa para você?
NB - Acho que o negro não deveria precisar de uma data para ser lembrado ou respeitado. Se lá atrás, após a abolição, os negros tivessem onde morar, plantar e viver com dignidade, nada disso seria necessário. Como viemos do nada, lutamos até hoje. E ainda vamos levar uns 150 ou 200 anos para estar na mesma posição que muitos brancos ocupam.
P - Você ainda sofre racismo, mesmo sendo reconhecido pelo seu trabalho?
NB - Claro. O racismo está nas atitudes. Para o negro chegar à igualdade, tem que ser duas vezes mais. Pode ter condição de frequentar lugares caros, mas evita porque sabe que será discriminado. Minha situação financeira melhorou, mas continuo negro. É um tiro. Recentemente, vi preconceito contra minha filha.
P - O que aconteceu?
NB - Foi numa churrascaria de um amigo. Ela chegou com roupa de colégio e entrou correndo na minha frente. Uma mesa de brancos olhou assustada para o garçom, como quem diz: "O que essa neguinha está fazendo aqui?". Quando me viram, ficaram sem graça e pediram foto. Recusei. A atitude deles disse tudo. No Brasil, o racismo é disfarçado por isso digo que é o país mais racista do mundo. Na Hungria, por exemplo, não aceitam negros, mas dizem claramente. Aqui "aceitam", mas praticam racismo todos os dias, de forma enrustida. Quem é mais racista: o que assume ou o que disfarça?
P - O que ainda falta para você?
NB - Nada. Tive até direito à vida novamente, uma segunda chance -enfrentei um câncer de intestino em 2008 e, na última sessão, tive um choque anafilático. Hoje só quero viver fazendo o que amo: compor e cantar. E ver meus filhos formados. Faltam só dois netos se formarem para eu ficar completo.
P - E essa história de você ser candidato ao Senado pelo Rio de Janeiro?
NB - Foi o desejo de um amigo que acabou virando notícia. Nunca tive intenção de ser político -juro. Deixo isso para quem é do meio. Sou cantor e compositor. Há pessoas muito mais preparadas para a vida política, como a Benedita da Silva, por exemplo. Repito: não tem nada disso.
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