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Flip 2021 sobre plantas deu frutos doces, mas teve debates espinhosos

Por Folha de São Paulo

05/12/2021 21h03 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não havia dúvidas de que esta Flip seria diferente das outras. Desde o início seus cinco curadores assumiram o caráter, digamos, vanguardista da ideia de discutir plantas e florestas como mote central de uma festa literária.

Era deliberado que houvesse um caráter quase pedagógico em torno do debate sobre a "virada vegetal". Conceituada por autores como Emanuele Coccia e Stefano Mancuso, presentes na festa, a ideia de ver as plantas como protagonistas se espalhou por todo o festival.

Uma mesa após a outra, reforçou-se a noção de que os seres humanos precisam dar um passo para trás e aprender com o reino vegetal, que nos precede e alimenta.

Dar centralidade à natureza é uma proposta inseparável dos saberes dos povos originários do país, o que causou uma bem-vinda multiplicidade de olhares indígenas na programação, da abertura cerimonial com Carlos Papá e Cristine Takuá até a última mesa, com Ailton Krenak.

O artista plástico Jaider Esbell também estava confirmado, mas em decorrência de sua morte, no mês passado, a Flip deixou uma tela preta em seu canal durante a hora do encontro.

Ficou evidente, nestes momentos, como a criação artística e a atenção ao meio ambiente podem ter uma relação intrínseca. Foi impressionante a quantidade de autores que falaram naturalmente sobre as suas inspirações vegetais sem que isso soasse como algo imposto goela abaixo.

Paulina Chiziane, por exemplo, discutiu as maneiras como sua obra vencedora do Camões frutifica de uma árvore; Djaimilia Pereira de Almeida mostrou como partir do ponto de vista das plantas pode ser algo literariamente rico; e Alejandro Zambra pensou como o crescimento dos vegetais enseja reflexões fundamentais sobre a vida humana.

Mas não foi o caso de todos. Talvez a mais flagrante dissonância tenha acontecido com a canadense Margaret Atwood, que respondeu com elegância a uma questão sobre a temporalidade vegetal no livro "Oryx e Crake", mas foi ficando cada vez mais impaciente com perguntas que forçavam assuntos que eram claramente laterais em sua obra.

Baú de referências sobre uma vasta gama de temas literários, políticos e sociais, Atwood acabou mal aproveitada numa rara aparição diante do público brasileiro.

Algumas mesas pecaram por serem espinhosas demais para quem não estava familiarizado com a obra das autoras, como a de Adriana Lisboa e Han Kang; outras por se apartarem quase totalmente da literatura para se dedicar apenas à familiaridade com a flora, como a de Coccia e Adriana Calcanhotto neste dia derradeiro de Flip.

Mas houve presenças de enorme vitalidade, como as de Alice Walker e Conceição Evaristo, cujo encontro luminoso alçou voo e quase dispensou a mediação de luxo de Djamila Ribeiro. A aproximação de duas escritoras tão afins foi o tipo de testemunho histórico que justifica a realização de eventos como a Flip.

É verdade que toda mesa teve um obstáculo significativo, posto desde o ano passado: é dificílimo fazer qualquer conversa fluir em janelinhas de Zoom, ainda mais as separadas por desníveis de conexão ou precipícios linguísticos.

A paciência do espectador para as lives, depois de 20 meses de pandemia, é ainda menor que no último ano. Mesmo assim, a organização dobrou a aposta, pulando de 12 para 19 mesas e de quatro para nove dias de programação virtual, incluindo dois fins de semana.

Como brincou um dos curadores na coletiva de imprensa que apresentou o programa, era quase como ver um capítulo de novela toda noite. Mas o funcionamento de um festival é outro, com bem menos gente disposta a maratonar a programação para entender a integralidade de sua proposta, ainda mais a distância.

Não se sabe exatamente o número de pessoas que assistiram às mesas deste ano. A Flip não quis detalhar dados de audiência, diferentemente do que fez ano passado, o que não costuma ser bom sinal.

É claro que a organização da festa sabia que boa parte de seus espectadores tradicionais não estavam necessariamente ávidos por discutir plantas. Mas foi em frente, com fé na importância do assunto, oferecendo um convite aos mais abertos para que embarcassem na reflexão e, inevitavelmente, alijando aqueles que decidiram dar de ombros para a temática verde.

"Essa Flip tem alguma coisa de revolucionária, porque é proativa", disse o sociólogo Muniz Sodré na mesa que encerrou o evento neste domingo. Falta averiguar o tamanho das tropas que essa revolução televisionada, afinal, angariou.


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