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Conheça centro psiquiátrico que usa terapia de Lygia Clark com concha e almofada

Por Folha de São Paulo

15/05/2022 9h33 — em
Arte e Cultura



RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Há uma semana num Caps, Centro de Atenção Psicossocial mantido pela prefeitura do Rio de Janeiro, um jovem de 18 anos com depressão depois de um grave surto psicótico queria mais era voltar para a própria casa. Rafael foi um dos que passou diversas vezes pela sala do terapeuta Lula Wanderley, que comanda o espaço no Engenho de Dentro, na zona norte da cidade.

Os pedidos de tratamento, medicamento e alta se repetiam entre os clientes —termo que a psiquiatra Nise da Silveira usava para se referir aos pacientes de hospícios e que Wanderley, que a teve como mentora, repete. A mãe do jovem também arrastava sua inquietação pelos corredores. Afinal, disse ela, se soubesse que aquilo demoraria, teria resolvido questões domésticas em vez de passar horas ali, longe de casa.

Os dois resolveram se instalar de vez dentro do consultório sem maçaneta para aguardar Wanderley. E não demorou até que Rafael se levantasse da cadeira perto da porta e se alongasse num colchão estendido no centro da pequena sala. Ele mexia nas conchas e almofadas de areia e de água dispostos ao redor do colchão, e dizia adorar o grande cobertor de bolinhas de isopor com que cobria o corpo. Eram esses os objetos que o acalmaram no surto, disse. Se fosse psicólogo, era assim que escolheria tratar seus pacientes.

O que Rafael manuseava eram adaptações que Wanderley faz desde os anos 1970 dos "Objetos Relacionais" de Lygia Clark. Todos são usados na "Estruturação do Self", terapia criada pela artista que até hoje é aplicada naquele centro psiquiátrico.

Clark é um dos nomes mais importantes das artes brasileiras do século 20, mas não era no circuito de museus e galerias que ela queria estar no fim da carreira. Ao renunciar a esse lugar do artista, ela mirou uma trajetória cada vez mais próxima da psiquiatria e, por consequência, da loucura. "Ouso dizer que o percurso de Lygia foi a procura de um público", diz Wanderley, artista e médico para quem ela deixou o legado da "Estruturação do Self".

Em vida, ela não conseguiu se afastar tanto assim do público dos cubos brancos. Seu método terapêutico ficou restrito a corpos brancos da zona sul carioca. "E talvez tenham sido os loucos, os da periferia, os que mais a entenderam", afirma Wanderley.

O terapeuta diz constatar isso desde que começou a aplicar as técnicas de Clark no Engenho de Dentro. Este é o mesmo hospital psiquiátrico em que Nise da Silveira montou seus célebres ateliês de pintura e mudou os rumos da psiquiatria no Brasil —foi ela que introduziu o terapeuta, então um estudante recém-chegado de Pernambuco ao Rio de Janeiro, a esse universo.

"Ela me mandou tomar minha sensibilidade como instrumento de trabalho, e a minha vida foi tentar criar uma forma de trabalhar a partir da imanência do encontro com o outro."

Ele passou a ver, naquele momento, o então hospício não como um espaço, mas como um gesto. Se o jeito com que as coisas eram feitas fosse alterado, tudo ali poderia ganhar um outro sentido —sem violência, eletrochoques e exclusão.

Numa das enfermarias, esse gesto se materializou no Espaço Aberto ao Tempo, o EAT. Há dois anos, ele se tornou um Caps ligado ao Instituto Municipal Nise da Silveira. Antes, no entanto, foi um projeto mais anárquico, ocupando prédios vazios.

Wanderley cravou visualmente o a proposta do EAT na entrada do antigo prédio do espaço, hoje abandonado, dentro do instituto. Ele suspendeu uma cama de leito grudando-a na parede para indicar o fim da tutela sobre os então pacientes.

O terapeuta lembra que, quando Clark criou sua proposta terapêutica, o mundo era mais rígido. O que ele viveu na passagem para o regime democrático foi o oposto —uma abertura sem precedentes capitaneada por profissionais que achavam que a via para lidar com transtornos psicóticos não era a de camisas de força e violência.

O espaço viveu seu auge nos anos 1990. Era um lugar livre, em que Wanderley não só experimentava com a obra de Clark, mas também com métodos desenvolvidos pela dançarina Angel Vianna e pela própria Nise da Silveira. "Misturei tudo para compor um lugar em que a gente trabalharia o sofrimento com certo prazer e alegria", conta.

Este jornal, aliás, viu isso de perto. Um repórter da Ilustrada foi o primeiro da imprensa a visitar o espaço, em 1994, quando ele ainda funcionava dentro do hospital Centro Psiquiátrico Pedro 2º. "Eu preciso dos pesinhos. Sem eles, acho que eu morreria", disse um cliente identificado como Odilon Arruda sobre a "Estruturação do Self" na época. Quase 30 anos depois, esta reportagem encontrou Arruda no Caps. Ele segue fazendo visitas diárias.

A terapia desenvolvida por Clark é feita com uma série de objetos que lembram almofadas. De plástico ou de tecido, eles são preenchidos com materiais diferentes —terra, bolinhas de isopor, água, sementes finas. O terapeuta os manuseia sobre o corpo do cliente, que tem suas orelhas envolvidas por conchas e seus olhos tapados.

O tecido que reveste as peças impede uma leitura imediata do corpo, afirma Wanderley. A gama de sentidos que as almofadas podem provocar nessa leitura não imediata faz com que quem esteja na terapia projete no objeto significados distintos, como mostram relatos, que ele compilou nos livros "No Silêncio que As Palavras Guardam" e "O Dragão Pousou no Espaço".

Clark registrou esse processo, e conta num documentário que o som de um objeto lembrou uma cliente da respiração de seu pai asmático, por exemplo.

"Ao dar significa aos objetos, os clientes criam formas mais criativas de lidar com o sofrimento, tenha ele vivências psicóticas ou um corpo despedaçado", diz o terapeuta. "O cliente ganha autonomia diante do sofrimento e autonomia social."

Ao trabalhar com Nise da Silveira, Wanderley também se aproximou do crítico de arte Mário Pedrosa, interlocutor fundamental para a recepção dos trabalhos de clientes da psiquiatra, caso de Emygdio de Barros.

Pedrosa detona, naquele momento, a discussão de se aquilo era ou não arte. Era, sentencia. É nesse encontro entre a psiquiatra e o crítico que Wanderley vê o impulso da ideia de que o artista cria a obra tanto quanto a obra cria o artista, "formando uma fita de Moebius".

É nesse lugar que Clark elabora seu trabalho —se afastando da obra contemplativa com seus "Bichos", esculturas metálicas que mudam de forma ao serem manipuladas. A própria artista resume isso em seu "Livro-Obra", de 1968: "Nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência".

"Nise e Mário eram egressos dos movimentos de esquerda e se afastaram de uma racionalidade utilitária burguesa", diz Wanderley. "Isso está na origem do caminho que seguiu o modernismo brasileiro, com o concretismo e do neoconcretismo."

A arte produzida em espaços psiquiátricos da forma como aconteceu no Brasil é um caso singular. É o que defende a pesquisadora americana Kaira Cabañas, que terá seu livro "Aprendendo com a Loucura" traduzido para o português em 2023.

O contexto singular brasileiro escapa, por exemplo, da ideia de "art brut", ou arte bruta, que o francês Jean Dubuffet criou nos anos 1940 para definir obras concebidas sem influências do universo artístico. Também não se relaciona com a "outsider art", arte de forasteiros, já que aqui trabalhos do tipo foram exibidos em bienais e em grandes museus.

Cabañas se vale do termo "arte da reforma psiquiátrica" para dar conta do que acontece aqui. Seu sentido é duplo: é uma arte feita no contexto da reforma psiquiátrica, mas também uma forma de viabilizá-la.

A pesquisadora ainda afirma em seu livro que o tema da loucura atravessa com força outros campos da produção artística nacional. Na literatura, como em "O Alienista", de Machado de Assis e em textos de Lima Barreto. No cinema, caso das cinebiografias de Nise da Silveira e Arthur Bispo do Rosario. E até nas novelas, como exemplificam personagens como Tonho da Lua, de "Mulheres de Areia" e Salvador, de "Império".

Olhar para esse contexto é fundamental para entender a recepção da obra de Lygia Clark nos Estados Unidos, onde ela teve uma grande retrospectiva em 2014, diz a pesquisadora. "É chave entender como o legado dela acaba no EAT. Ela deu ferramentas não somente para a arte, mas para o cuidado."

Se Wanderley já viveu uma época menos conservadora, agora ele se vê num ambiente mais fechado a experimentações. O colchão usado no tratamento dos pacientes tem ao seu redor um prédio bem mais burocrático. A terceirização generalizada de funcionários nos aparelhos públicos de saúde também alavancam um processo de desumanização do trabalho, ele afirma.

São novos tempos, o que se reflete nos transtornos dos clientes. "Leigos veem a loucura e a arte como uma coisa imutável, mas elas são sociais. A maneira com que o sofrimento aparece muda de uma geração para a outra", diz ele.

Hoje saíram de cena as grandes esquizofrenias, e têm surgido cada vez mais casos de uma "profunda melancolia despersonalizante", não raro acompanhadas de mutilações. "Há um vazio de uma cultura que marcava a identidade, falta de estabilidade de emprego, uma sequência de vazios que o mundo globalizado trouxe para um país periférico como o nosso."

Wanderley diz que ninguém nunca quis acabar com o projeto do EAT, mas que ele também não teve apoio nesses anos todos. Ficar de pé exigiu que o espaço se tornasse um Caps quando a gestão do espaço deixou de ser federal. Não há hoje a mesma afetividade que o projeto já teve, ele nota com certa tristeza ao descortinar o que se passa no serviço público.

"Aceitei porque isso aqui está no fim. Há uma uniformização que atrapalha um pouco a administração frouxa e anárquica que eu já fiz. Mas me deu uma sensação de que reconstruir esse projeto permanentemente talvez seja a missão da minha vida."

É um jeito de evitar a maior preocupação que Clark admitiu ter com a "Estruturação do Self" no documentário "Memória do Corpo" —a de morrer e ter feito um trabalho que nunca seria aplicado.


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