Por que Trump erra ao dizer que aço chinês deslocou produto do Brasil para os EUA, segundo analistas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O aumento de aço chinês no mercado brasileiro não impulsionou a venda de aço feito no Brasil para os Estados Unidos, segundo especialistas ouvidos pela Folha. O governo americano relacionou essa como uma das razões para as tarifas impostas sobre o produto brasileiro, em decreto divulgado na última segunda (12) pelo presidente americano, Donald Trump.
De acordo com o ato assinado por Trump, a partir de 12 de março todo tipo de aço estrangeiro que entrar nos EUA precisará pagar uma taxa de 25% sobre seu preço inicial. A medida, segundo o presidente dos EUA, está relacionada à segurança nacional.
No decreto, Trump argumentou que as exportações de aço da China ultrapassaram 114 milhões de toneladas até novembro do ano passado, o que teria causado o deslocamento da produção em outros países e os forçado a exportar maiores volumes de aço para os EUA. A dinâmica, de acordo com o republicano, teria provocado queda na produção americana.
De fato, a China tem aumentado suas exportações de aço, à medida que a demanda local diminui devido à queda de ritmo do setor imobiliário no país. A produção, por outro lado, segue alta apesar de um leve recuo no ano passado. Essa sobra é destinada ao mercado internacional e acaba inundando alguns países de aço chinês.
"A China muitas vezes não opera em economia de mercado; ou seja, há situações em que o aço chinês é importado abaixo do preço do ferro-gusa. A China desvia para o resto do mundo e nenhum país consegue competir com ela, já que sua produção tem muito subsídio e subfaturamento", diz Welber Barral, sócio do Barral Parente Pinheiro Advogados e ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil. "Eles continuam mantendo a produção apesar de prejuízos".
É o caso, por exemplo, do Brasil, que viu as importações da China dispararem nos últimos anos e ameaçarem parte da produção das siderúrgicas instaladas no país. Em 2020, os chineses venderam apenas 880 mil toneladas de aço para o Brasil, mas esse número foi crescendo de forma abrupta até chegar a 2,9 milhões em 2023. Ao todo, as importações de aço para o Brasil somaram 5 milhões de toneladas em 2023.
A coerência no discurso de Trump, porém, para por aí, segundo especialistas no mercado de aço brasileiro. Primeiro porque o tipo de aço importado da China não é o mesmo exportado para os Estados Unidos.
A maior parte das importações da China, segundo dados do Instituto Aço Brasil (que representa as siderúrgicas brasileiras), é de chapas e bobinas de aço, produtos com maior valor agregado do que os semiacabados vendidos pelos brasileiros aos americanos. Assim, não seria possível o Brasil comprar aço da China e revendê-lo diretamente para os Estados Unidos, numa espécie de triangulação para evitar taxas.
Essas triangulações, por exemplo, acontecem entre China e México e, como a Folha mostrou, em alguns casos envolvendo siderúrgicas com plantas no Brasil e no México. Todas envolvem, no entanto, semiacabados e não produtos finais, como os vendidos pela China ao Brasil. Segundo o Instituto Aço Brasil, o país importou 184 mil toneladas de semiacabados da China em 2023, apenas 6% das importações de aço vindas do país asiático.
Outro ponto que enfraquece o argumento de Trump é de que as exportações para os Estados Unidos não seguiram o crescimento de importações da China, o que afastaria a correlação entre os dois fatores.
As vendas de semiacabados diretamente para os EUA cresceram de 3,22 milhões de toneladas em 2020 para 3,44 milhões em 2024 (em 2022 e 2023, foi registrado queda para 1,9 milhões e 2,98 milhões, respectivamente). Como mostrado anteriormente, as importações da China tiveram um salto abrupto.
"Se compararmos com a expansão da penetração do aço chinês no Brasil entre 2023 e 2024, o argumento do Trump perde força. Afinal, aumentou a importação de aço da China e diminuiu a exportação de aço do Brasil para os EUA", diz Artur Bontempo, analista de minério de ferro e aço na Wood Mackenzie.
Esses dados levam em conta a quantidade de aço brasileiro que entrou nos EUA. Por determinação, o Brasil não pode enviar mais de 3,5 milhões de toneladas de semiacabado, mas algumas siderúrgicas instaladas no Brasil, como Ternium e ArcelorMittal, enviam parte de suas produções para o México, onde, até o meio do ano passado, o produto era processado e direcionado para os EUA, sem entrar na cota estipulada pelo governo americano.
Ainda assim, quem acompanha o mercado diz que a triangulação com o México não tem relação com o aumento de importação com a China, justamente devido às características dos aços negociados com o país asiático. Além disso, a Ternium, empresa que mais faz esse tipo de operação, foca o mercado externo desde antes da inundação de aço chinês no Brasil.
"O argumento do Trump não é verdadeiro, porque, se você somar o que é produzido no Brasil e o que é importado você tem o mesmo consumo há quase 15 anos", diz Barral.
Segundo ele, a narrativa do presidente americano é voltada para as siderúrgicas chinesas que se instalam no México, recebem produtos semiacabados da China e os processam, em larga escala, para vendê-lo aos EUA e contornar barreiras contra o país asiático. De 2019 a 2021, por exemplo, entravam nos EUA cerca de 297 mil toneladas de aço mexicano por mês essa média subiu para 328 mil nos três anos seguintes.
No documento assinado por Trump na segunda há, de fato, lacunas na tentativa de relacionar o aumento de importações de aço da China no Brasil com o aumento de vendas de aço brasileiro para os EUA.
Em um trecho do decreto, por exemplo, Trump diz que de 2022 a 2024 as importações vindas de países sujeitos a cotas, como Argentina, Brasil e Coreia do Sul, aumentaram cerca de 1,5 milhão de toneladas, ainda que a demanda dos EUA tenha diminuído em 6,1 milhões.
O presidente diz que a Argentina "continuou exportando aço para os EUA em quantidades insustentáveis, especialmente devido ao recente aumento de produtos semiacabados", mas que os dados oficiais do país não permitem a checagem de uma eventual crescente demanda argentina pelo aço chinês.
Trump não chega a citar dados específicos do Brasil e apenas frisa que as importações vindas da China "cresceram tremendamente nos últimos anos, mais do que triplicando desde a instituição das cotas". Ele, porém, não apresenta aumento das exportações de aço brasileiro para o mercado americano o que, ao menos oficialmente, não houve.
A inundação de aço chinês no mercado brasileiro, aliás, é alvo de críticas das próprias siderúrgicas instaladas no Brasil. No ano passado, após receber pressão das empresas brasileiras, o governo federal estipulou cotas de entrada de alguns tipos de aço chinês no Brasil e fixou alíquota de 25% para o volume excedente. E a pressão ainda segue.
Em nota divulgada após o anúncio de Trump, o Instituto Aço Brasil negou o argumento do presidente americano e disse que "o mercado brasileiro também vem sendo assolado pelo aumento expressivo de importações de países que praticam concorrência predatória, especialmente a China".

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