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Sayaka Murata lança 'Terráqueos', que evoca ETs ao lembrar traumas

Por Folha de São Paulo

17/05/2021 20h34 — em
Arte e Cultura



FOLHAPRESS - "Terráqueos", de Sayaka Murata, chega ao Brasil precedido pela fama internacional da autora, alcançada com "Querida Konbini" —que, detalhe pouco lembrado, foi o décimo romance da escritora japonesa.

"Querida Konbini" narrava a história de uma mulher que, aos 36 anos, havia passado metade de sua vida trabalhando numa loja de conveniência.

Ora, o trabalho numa konbini —nome dado a esses negócios onde um japonês pode resolver a maior parte das necessidades do dia a dia— é uma ocupação de baixa qualificação, aceitável somente como algo temporário.

Para piorar, Keiko, a protagonista, tampouco tinha ou manifestava intenção de ter relacionamentos amorosos. É só na konbini que ela consegue se sentir com uma engrenagem útil ao mecanismo do mundo.

Murata foi ela própria uma funcionária de konbini por longos anos, sustentando assim sua carreira literária. Manteve o ganha-pão até depois do sucesso, só o abandonando quando se viu perseguida por um fã.

"Querida Konbini" vendeu apenas no Japão mais de 1 milhão de cópias e foi traduzido para mais de 30 idiomas, espalhando pelo mundo a prosa desapaixonada de Murata —aliás, vale ressaltar o trabalho de Rita Kohl; a voz que dá à autora em português soa fluida e convincente, nunca "traduzida".

O livro saiu no Brasil pela Estação Liberdade, que agora lança "Terráqueos", novamente uma história de desajuste social.

No início do romance, Natsuki Sasamoto, sua protagonista e narradora do romance, é ainda menina. Ela diz que tem poderes mágicos concedidos por seu fiel companheiro de pelúcia, Piyut, que seria na verdade um emissário do planeta Powapipinpobopia para salvar a Terra.

A menina se sente apartada do núcleo que compõe com pai, mãe e a irmã mais velha, Kise. Anseia pela reunião com a família ampliada, que ocorre só uma vez por ano no Obon. Nessa festa dos mortos, na casa dos avós na montanha, é quando revê a cada agosto seu primo Yuu.

Yuu tem uma estranha relação com a mãe, que diz que ele é um extraterrestre. O menino leva a sério. Unidos pela falta de lugar no seio familiar, os dois se tornam namorados.

Natsuki tem convicção de que Yuu veio do mesmo planeta que Piyut e aos poucos passa a crer que ela também é powapipinpobopiana. Se o nome é complicado, é porque guarda coisas difíceis de dizer.

Natsuki, logo aprendemos, não é apenas alvo do desprezo de sua família. É também vítima de abuso sexual por um jovem professor, a cujas investidas reage fisicamente. Perde o paladar e parte da audição. Procura retomar controle de seu corpo aprofundando a relação com Yuu, mas a tentativa é cerceada, e os primos perdem contato.

Quando reencontramos Natsuki, ela é uma jovem adulta que se divide entre se integrar ou não à Fábrica de Gente, como ela chama o mundo ao seu redor, que ordena o casamento e a procriação.

A vida da Natsuki adulta evoca temas de "Querida Konbini" —ser ou não parte das engrenagens sociais— e traz à cena a relação conjugal sem sexo que Murata já abordara em "Um Casamento Limpo", conto publicado em português no 13º volume da revista Granta.

A fim de se mostrar encaixada no que a Fábrica espera dela, Natsuki se une a Tomoya, outro ser à margem, num casamento assim, dividindo a casa e suas funções, mas nunca a cama. A pouca intimidade do casal não impede o marido de idealizar o passado de Natsuki na casa da avó. Tendo crescido na cidade, quer conhecer as montanhas de Akishina.

Tomoya se reconhecerá ele próprio powapipinpobopiano e, com isso, fica claro que o rótulo não se limita a uma fantasia infantil, mas é uma metáfora para os que, alienados pelo trauma, se sentem alienígenas entre as regras terráqueas.

A viagem a Akishina se dá e, nela, Yuu é reintroduzido na trama, que muda mais uma vez.

Se o começo fantasioso com toques de ficção científica não nega o tipo de leitura que agradava à jovem Murata —que na infância lia obras do gênero e histórias de mistério e tentou escrever seu primeiro romance aos dez anos—, aos poucos o relato ganha tintas de horror e de absurdo.

Murata não poupa detalhes escabrosos, insertados porém com a naturalidade sem excessos de sua linguagem. Mesmo os momentos mais delirantes são narrados como algo corriqueiro, aproximando o leitor da visão extraterrestre de seus desalentados personagens.

TERRÁQUEOS

Avaliação Bom

Preço R$ 59 (288 págs.)

Autor Sayaka Murata

Editora Estação Liberdade

Tradução Rita Kohl


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