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Rachel Cusk busca o que há de essencial na experiência feminina em 'Segunda Casa'

Por Folha de São Paulo

14/05/2022 11h35 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A inquietação da canadense Rachel Cusk, 55 anos e consagrada pela trilogia "Esboço", ao narrar a vida feminina já rendeu visitas a extremos.

Depois do excesso de presença pessoal em "Aftermath" e "A Life's Work", ainda inéditos no Brasil e pelos quais foi criticada, e do esvaziamento que marca a protagonista da trilogia, a autora aposta, com o novo "Segunda Casa", em pegar emprestados os sapatos da excêntrica mecenas Mabel Dodge Luhan, personagem real que viveu de 1879 a 1962, para extrair o que há de universal na experiência feminina.

Luhan, esquecida pela história da arte americana, merece créditos por fazer um papel que, para Cusk, resume essa vivência. A mecenas usou a herança para ajudar artistas a florescer, mas nunca produziu arte ela mesma nem foi prestigiada. "Ela era o público e a pessoa que os reconhecia e que queria celebrá-los. Nenhum fez o mesmo por ela. Isso expressa algo essencial sobre o dilema feminino."

Cusk esbarrou com a personagem ao pesquisar sobre o escritor inglês D.H. Lawrence, a quem tem como um tipo de mentor. Luhan registrou o período em que recebeu Lawrence no Novo México no livro de memórias "Lorenzo in Taos", de 1932.

Dedicado à matrona das artes, "Segunda Casa" bebe goladas do registro. "Memória e justiça se conectam profundamente na experiência de falta de poder", justifica a autora. Na edição brasileira, ela decidiu suprimir a homenagem -e o livro se sustenta firme sem a anedota biográfica.

O leitor acostumado com as afiadas divagações desapegadas de enredo de obras anteriores ganha embalos narrativos --e uma profusão de pontos de exclamação, cortesia do estilo de Luhan- com "Segunda Casa".

Narrado em primeira pessoa pela protagonista, referida apenas como "M", e endereçado a um interlocutor que conhecemos como Jeffers, o romance se passa em um pântano onde a escritora de meia-idade vive com o marido Tony, em um local e período não especificados.

Sem o aviso da relação com o universo de Luhan, a menção a uma pandemia pode até convencer o leitor que se trata de uma mulher mais velha divagando, hoje, de forma mística e antiquada sobre arte e feminilidade. Segundo Cusk, a suspensão do tempo é deliberada.

"Acredito que uma das características da expressão literária feminina, se for honesta, é que parece que nada mudou. Você pode ler a experiência de uma mulher da Idade Média e ainda vão ter coisas que permanecem profundamente inalteradas."

M construiu uma segunda casa no terreno para oferecer residências artísticas, como fez Luhan. "Eu precisava de certo grau de relacao, ainda que pouca, com os conceitos de arte e com as pessoas que acatam esses conceitos", diz a narradora.

Ela mira o pintor L, um homem difícil cuja obra emana uma "aura de liberdade masculina que pertence igualmente a maioria das representacoes do mundo e da nossa experiencia humana nele, e que nos, mulheres, crescemos acostumadas a traduzir em algo que possamos reconhecer por nos mesmas".

M quer que L veja o pântano com seus olhos e registre, não apenas aquele espaço, mas ela, em pinturas. "Ela quer que o senso de realidade seja devolvido ou restaurado", explica a autora. "Eu interpretei isso como a perda de definição na feminilidade das mulheres de meia-idade e a sensação de invisibilidade."

O processo de ser vista e registrada por um homem é, no livro, essencial. "Como é possível que minha vida incorpore tanto a sensibilidade masculina a ponto de eu sentir que ela é capaz de me expressar?", questiona a autora.

Cusk foi condenada por ignorar questões políticas. Se tomarmos o mote feminista da década de 1960, "o pessoal é político", ela não deixa a desejar ao pensar o lugar social da mulher -e ganha pontos por escapar da tentação das heroínas perfeitas e livres de dilemas.

M é, ao mesmo tempo, vítima --do patriarcado, da crueldade de L-- e figura controladora e invasiva, que mal gera simpatia.

"Me sinto distante dos discursos sobre feminilidade", diz Cusk. "Uma grande questão para mim é: quando você para de ser uma mulher? Parece, no momento, que é quando você deixa de ser autorizada a ter a voz de uma."

SEGUNDA CASA

Preço: R$ 62,90

Autor: Rachel Cusk

Editora: Todavia

Tradução: Mariana Delfini


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