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Obra que ataca judeus é retirada da Documenta de Kassel e gera debate online

Por Folha de São Paulo

28/06/2022 12h36 — em
Arte e Cultura



KASSEL, ALEMANHA (FOLHAPRESS) - Nesta quarta-feira (29), a Documenta de Kassel, uma das mais importantes exposições artísticas do mundo, promove um debate sobre antissemitismo na arte. O motivo para essa convocação foi a remoção de uma das obras pelo seu conteúdo antissemita, logo após a abertura.

De autoria do coletivo Taring Padi, da Indonésia, a obra intitulada “People's Justice”, tinha como um dos seus suportes mais importantes um enorme banner colocado em praça pública, que retrata a resistência política por meio de centenas de figuras quase numa estética de cartum.

Entre elas, duas desencadearam protestos. A primeira retratava um militar, com Mossad —o serviço de espionagem israelense— estampado no quepe, lenço vermelho no pescoço e uma estrela de Davi —a estrela de seis pontas que está na bandeira israelense. Ele está em um grupo, em que aparecem personagens associados a forças repressivas, como agentes da KGB. Todos estão de capacete e carregam armas na mão. A particularidade do ícone israelense é que, diferentemente dos outros, é o único que tem um focinho de porco no lugar de uma máscara.

A ofensa não remete apenas ao fato de a religião judaica proibir nas suas regras de alimentação a ingestão do porco, mas a um dos mais ultrajantes símbolos do antissemitismo, a Judensau —porca judia. Presente em gravuras diversas e esculpida em dezenas de igrejas alemãs e de outros países europeus, a imagem circula desde o século 13. Nela, judeus mamam em suas tetas, enquanto um rabino olha indecorosamente por debaixo de seu rabo. Fazia parte da pedagogia nazista levar crianças para ver uma Judensau e se educar para um mundo mais antissemita.

A presença do lenço vermelho nessa mesma imagem do "Mossadsau" do People's Justice é um tanto intrigante. A "cor de Israel" é o azul da sua bandeira. Vermelho é a "cor do comunismo". A associação do judeu com o comunismo faz parte do cânone da propaganda nazista, que se fartou de usar o ícone da foice e do martelo junto da estrela de Davi em suas peças gráficas.

Ao mesmo tempo, a propaganda nazista foi pródiga em irradiar as teses apócrifas do livro "Os Protocolos dos Sábios de Sião", que circulam desde o início do século 20, sobre a conspiração judaica para dominar o mundo pelo controle do sistema financeiro internacional. Esse viés aparece em “People's Justice” em uma outra personagem caricata, associada aos representantes "do mal". Aqui temos um homem vestido como um businessman, de terno, gravata vermelha e lenço na lapela. Charuto na boca e expressão malévola, ele personifica o capitalista sanguinário e inescrupuloso.

Para que não pairem dúvidas sobre quem é esse símbolo do capitalismo na multidão que ocupa o quadro, ele tem peiot —os cachos de cabelo laterais característicos dos judeus religiosos.

Seus traços fisionômicos foram utilizados a rodo pelos nazistas —nariz proeminente e adunco, sangue nos olhos arregalados, rosto magro e queixo pontiagudo. Com dentes vampirescos, que faz referência aos fantasmas de judeus acusados de matar crianças na Idade Média, ele traja também um chapéu preto, comum a esses religiosos, e no seu chapéu está inscrita a insígnia da SS nazista. Essa era a guarda de elite da Alemanha hitlerista, uma espécie de polícia política encarregada do terror do Estado e da vigilância dos campos de concentração, onde milhões de judeus, sinti, comunistas e homossexuais foram executados.

A retórica visual antissemita da obra é inegável.

Sua implantação foi seguida de protestos que envolveram da embaixada de Israel à ministra da Cultura da Alemanha e inúmeras publicações nas redes sociais, levando a direção da Documenta de Kassel e os curadores a primeiramente cobrir a obra e, depois de quatro dias, retirá-la.

A diretora da Documenta de Kassel, Sabine Schormann, o Comitê de Seleção Curatorial, o coletivo que faz a curadoria do evento, Ruangrupa, e o que é autor da obra, Taring Padi, apresentaram ao longo dos últimos dias suas desculpas pelo ocorrido, admitindo que o conteúdo é antissemita. A tendência geral é circunscrever que o fato é grave porque aconteceu na Alemanha. A memória traumática da Segunda Guerra é sem dúvida um elemento simbólico nada desprezível nesse contexto. Mas a gravidade do caso é a presença e o aumento do antissemitismo no mundo contemporâneo e a forma como seu imaginário retorna.

Antissemitismo não quer dizer reivindicar o direito de criticar Israel, acusá-lo de opressão e apartheid, defender o princípio de autodeterminação dos palestinos, como fazem ativistas, intelectuais e movimentos sociais, judeus e não judeus do mundo todo, inclusive israelenses e palestinos.

Antissemitismo é um discurso de ódio que prega a discriminação e hostilidade contra os judeus e se arroga o direito de exercer a violência contra judeus como judeus. Para tanto, mobiliza imagens e estereótipos que remontam às Cruzadas do século 11 e historicamente justificaram todas as perseguições que, não poucas vezes, resultaram em massacres e genocídios de judeus, como a Inquisição ibérica, os pogroms dos países do Leste europeu e o Holocausto nazista.

Imagens como as que circularam brevemente na 15ª Documenta de Kassel não são esporádicas. Estão presentes aos quaquilhões de bytes na internet e por todas esquinas do planeta. São como o ovo da serpente e, como já aprendemos com o cineasta Ingmar Bergman, através da sua fina membrana pode-se ver o réptil inteiramente formado. Reconhecê-lo e enfrentá-lo, para além do caso específico dessa exposição, é um ponto de partida para tentar compreender como o antissemitismo se irradia pelos mais variados contextos sociais, incluindo-se aí o circuito das artes.

DEBATE 'ANTISSEMITISMO NA ARTE'

Quando 29 de junho, 23h30 (horário de Brasília)

Link: https://documenta-fifteen.de


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