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Moda anti-Bolsonaro tem até calças abertas na bunda em nova leva de protesto fashion

Por Folha de São Paulo

03/08/2021 17h37 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A moda anda incomodada. A urgência por uma roupa feita em condições mais humanas, detonada pelo desabamento que matou milhares num prédio de oficinas de costura em Bangladesh há quase dez anos, fez rodar o mundo a tag que perguntava quem fez suas roupas. A conta de que essa indústria é a segunda mais poluente, ainda que não haja dados suficientes para confirmar isso, também fez quem compra e costura duvidar se a roupa é mesmo sustentável.

Agora, a reboque da emergência em mudar padrões de comportamento excludentes que acompanham a criação ao longo do tempo, estilistas aproveitam o conceito de virada de chave provocada pela pandemia para engrossar esse questionário ao perguntar do que fala a sua roupa.

Questões sobre identidade de gênero, preconceitos racial e de orientação sexual, o viés classista que separou os guarda-roupas de pobres e ricos, as modelagens de sílfide, valores sobre originalidade e cópia, ancestralidade e mesmo o peso de criar em ritmo de padaria, saíram do espectro das ideias para virar roupa. E, nesse contexto, o evento de desfiles Casa de Criadores virou espécie de catalisador das demandas num tempo que põe na berlinda a própria função da roupa.

Se, no século 20, a camiseta era a maior forma de expressão do inconformismo, onde se estampava em palavras o que queriam dizer os jovens, neste, é na mesa de corte que o desconforto se materializa. Não importa muito se a roupa se encaixa no ideal de elegância do passado, porque essa nova geração de designers -e a passarela virtual do evento confirmou na última semana- escreve em linhas costuradas para uma juventude fashionista pouco afeita a ela.

Um dos discursos que talvez reúna boa parte das mudanças é o de Vicenta Perrotta. A designer comanda o Ateliê TRANSmoras, que não só movimenta dezenas de profissionais transgênero, como também reimagina o papel do designer em criar o novo.

Nada do que cria parte da matéria-prima virgem, mas sim dos restos têxteis, de pedaços de guarda-chuvas até tecidos nobres como os cedidos por Dudu Bertholini, ex-estilista da Neon, para a coleção criada em parceria com marcas colaborativas como as dela, a Use Franka e Vista Vaskes.

É nítido no horizonte dessas novas grifes de São Paulo um esforço para quebrar as silhuetas padrão pensadas para o corpo feminino e jogar luz sobre corpos transgênero. Duas marcas, o Ateliê Criativa Vou Assim e a Trash Real Oficial, também geridas por pessoas trans em esquema colaborativo, são emblema da estética de tons ácidos, em que meias arrastão, jaquetas detonadas, calças desconstruídas e o mesmo material de reúso deslocam a percepção sobre a imagem asseada do luxo.

É como se os designers quisessem jogar sal na receita algo insossa que permeia a criação dita mainstream. Ou um pouco de veneno, como faz Rafael Caetano em sua nova coleção.

O estilista buscou referências à tragédia e ao glamour inerentes à vida da diva transexual espanhola Cristina Ortiz, a La Veneno, para transferir às roupas masculinas um espírito de libertação dos códigos de masculinidade. Calças abertas nas nádegas, paetês e unicórnios integram o caldeirão estético desse estilista conhecido da comunidade gay paulistana que frequentava as festas de outrora.

As bandeiras não são sempre levantadas ao pé da letra, porque os estilistas já partem do pressuposto que sua clientela entende o discurso, embora às vezes considerem necessário levantar de novo os estandartes.

Uma das estilistas mais interessantes dessa geração é Jal Vieira, que expôs em seu fashion filme -todas as marcas apresentaram curta metragens- modelos segurando bandeiras que remetiam aos protestos recentes contra o governo Bolsonaro.

As frases vinculadas ao racismo, à transfobia e à luta indígena pela demarcação de terras, fatos intrincados ao noticiário, apareceram nas faixas que fizeram par com as roupas convertidas em armaduras, bem ao estilo militar. Aqui, mais uma vez, o texto é o tecido.

E quem talvez tenha feito melhor essa transferência foi a Dendezeiro. A grife dos estilistas baianos Hisan Silva e Pedro Batalha extrapolou a questão racial, que deu a tônica das estreias mais importantes da temporada de desfiles nacionais, para produzir um manifesto sobre a valorização das linhas e estampas do corpo.

O vitiligo, as estrias e as sardas, motivos de vergonha para muitos, foram destacados como estampas e traços costurados às roupas tingidas com cores de peles, variações do "nude" que a indústria da moda, ainda na década passada, vinculou à derme esbranquiçada. O racismo, eles lembram, também pode se esconder nas tramas.

O que faz a passarela da Casa de Criadores se tornar esse espaço convulsivo de experimento é sua curadoria, um termômetro do que será visto em plataformas maiores, seja a das equipes de estilo das marcas com poder aquisitivo, seja as das passarelas de outros eventos como a São Paulo Fashion Week, com uma programação que pinça dali parte de sua força. Isaac Silva, João Pimenta e Gustavo Silvestre, por exemplo, saíram do guarda-chuva fundado por André Hidalgo, o fundador da Casa de Criadores.

A maior preocupação desse diretor artístico nunca foi exatamente apresentar novos nomes, mas oferecer novos pontos de vista sobre a produção de moda brasileira. Um dos temas ainda pouco comentados nas rodas exclusivas da costura, e que já ganha o mundo, é a busca por originalidade. O que é plágio e o que é autêntico num campo em que já se criou, se recriou e se desfez de tudo.

A estreia da Fkawallys Punk Couture foi significativa para levantar a questão. Batizada com o apelido do designer Fábio Gurjão, a grife busca peças de outras marcas e as reinventa, aplicando novas estampas em silk e aviamentos. A etiqueta se sobrepõe à original colada e flana pelo estroboscópio das noites paulistanas como criação autêntica.

O subtexto aqui é se as marcas servem mesmo como veículos de expressão individual, como seus donos sempre disseram servir, ou se elas se apoiam nesse discurso para que suas etiquetas virem o principal motivo da compra. O debate é longo, mas Gurjão lança a dúvida com uma estética pirateada revista sob uma ótica tropical bem amarrada num visual trash para causar impacto.

Mesmo os estilistas que preferem se dedicar à construção da roupa parecem seguir esse caminho para questionar a régua que aprenderam nas faculdades. As novas costuras apresentadas por Ellias Kaleb, Diego Gama, Fábio Costa, da Not Equal, Felipe Caprestano e Diego Fávaro, cinco das melhores tesouras no sentido matemático da produção de moda vista no evento, não se atêm a reproduzir as modelagens clássicas

Eles adaptam a equação das bases de algodão, seda e linho para mudar as formas, abrindo fendas, ampliando ombros e revelando partes que antes eram cobertas nos livros de costura.

A moda pós-pandêmica, pelo menos esta brasileira apresentada pela Casa de Criadores, não deverá ser um emaranhado de roupas para dormir como se viu no último ano e meio, mas só memórias, ainda que diluídas, de um passado que o design de moda quer sepultar e não transformar só em textão.


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