'Escravidão na Poesia Brasileira' esquece obra de mulheres negras
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A capa de "A Escravidão na Poesia Brasileira - Do século 17 ao 21" espelha a obra "Ferramentas de Castigo", pertencente à série "Obra Divina não se Quebra à toa", do artista, negro, Rafael Cruz. A esta série também pertencem "Ferramenta de Obstáculo" e "Ferramenta de Ameaça", nomes associados a tecnologias de um sistema que ainda organiza a sociedade brasileira, sua memória e sua ideia de futuro, a escravização negra.
Em nossa literatura nacional, ferramentas poderosas têm sido desenvolvidas e aplicadas ao longo dos séculos. Um nome muito simples as descreve, silenciamento aquela tecnologia de fabricar esquecimentos. Sua subversão, única por natureza, é a espiral do tempo na memória uma epistemologia da teima em não esquecer. É neste lugar que a antologia se localiza, ao trazer para o centro um tema que permeia a poesia brasileira de ponta a ponta, mas que se mantinha à margem do sensível e dos arquivos da historiografia e da crítica.
Organizada por Alexei Bueno, o livro reúne cerca de 80 autores e mais de 200 poemas, dispostos cronologicamente e divididos em torno de alguns temas, como o exílio forçado, a profanação da mulher, as revoltas e fugas, Palmares, Zumbi e outras figuras míticas, reações às leis, entre outros.
Há autores pouco lembrados, como Cassiano Ricardo, Melo Morais Filho, Catulo da Paixão Cearense e Paulino de Brito; autores conhecidos, porém pouco visitados no âmbito do mote da antologia, como Oswald de Andrade, Euclides da Cunha, Carlos Drummond e Augusto dos Anjos; e alguns poucos autores negros em suas poéticas variadas, como Luiz Gama, Cruz e Sousa, Solano Trindade, Carlos de Assumpção, Edimilson de Almeida Pereira e Henrique Marques Samyn.
Lamentavelmente, há pouquíssimas autoras presentes na obra. Entre os 60 autores que compõem o livro, somente cinco são mulheres e, destas, apenas uma é negra. Maria Firmina dos Reis, Narcisa Amália, Emília de Freitas, Francisca Júlia e Cecília Meireles representam a autoria feminina na antologia.
Não houve, portanto, diálogo com o tempo presente marcado pela presença autoral de mulheres que tem existido em voz alta neste território textual que silencia dissonâncias da autoria hegemônica, e que também se inscrevem no tema do livro. Tampouco parece ter sido feita pesquisa mais apurada acerca de poetas soterradas pelos regimes de comunicabilidade e transmissão que articulam o cânone.
Contudo, o problema mais grave no âmbito da autoria feminina incide sobre a memória da única autora negra presente na obra, uma autora já muito vilipendiada pelo silenciamento sistêmico que forja os limites do que se entende por literatura brasileira. Trata-se da curtíssima nota biográfica que o autor dedica para Maria Firmina dos Reis, na qual se lê: "Faleceu cega, aos 95 anos, na cidade maranhense de Guimarães (...), na casa de uma sua ex-escrava".
O pronome possessivo aqui performa uma ficção que sequestra a pessoa, vilipendia sua trajetória e igualmente ignora a produção crítica de pesquisadores e pesquisadoras empenhados em construir pontes mais seguras para o encontro com essa escritora pioneira do abolicionismo brasileiro, silenciada durante todo o século 20. Desde a pesquisa fundamental de Nascimento Moraes Filho, estudos já mostram que Maria Firmina dos Reis jamais aceitou a escravidão. Pelo contrário, lutou contra ela com coragem, inteligência e altivez.
Maria Amélia, a ex-escravizada e ex-aluna que abrigou Maria Firmina dos Reis em sua velhice, foi, inclusive, alforriada graças aos seus esforços, conforme mostra a biografia recente escrita por Agenor Gomes.
Excetuando essa ferramenta de castigo, o livro é um capítulo importante da historiografia literária brasileira, posto que visibiliza, na poesia, a presença constante da experiência que nos produz enquanto sociedade, a escravização de pessoas negras e a permanência dos senhores.
A ESCRAVIDÃO NA POESIA BRASILEIRA - DO SÉCULO 17 AO 21
Preço R$ 89,90 (714 págs.)
Editora Record
Organização Alexei Bueno
Avaliação Bom
ASSUNTOS: Arte e Cultura