Como sagas de Ângela Diniz e Adriane Galisteu evocam o apagamento pelo machismo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ângela Diniz, 32 anos, foi morta com três tiros no rosto e um na nuca por seu namorado, Doca Street, em Búzios, no dia 30 de dezembro de 1976. Foi condenado três anos depois a uma pena simbólica, amparado na tese da "legítima defesa da honra".
Adriane Galisteu, hoje apresentadora do reality A Fazenda, na Record, tinha 21 anos em 1º de maio de 1994, dia em que morreu seu namorado, Ayrton Senna. A família do piloto nunca deixou que a história dela fosse associada ao nome do filho. Preferiam Xuxa, ex-namorada de Ayrton, como viúva oficial.
Cyclone, nome artístico de Maria de Lourdes Castro Pontes, morreu aos 19 anos, em 1919, por complicações de um aborto. Era amante de Oswald de Andrade, com quem deixou seu único romance terminado, com o pedido de que ele o publicasse, o que nunca aconteceu.
Essas três histórias são revisitadas agora, cada uma a sua maneira e, juntas, dizem muito sobre o machismo à brasileira.
No documentário "Meu Ayrton por Adriane Galisteu", disponível na HBO Max, a celebridade conta, pela primeira vez, depois de mais de 30 anos da morte do piloto, sua versão do namoro apaixonado que viveu no último ano e meio de vida do tricampeão mundial de Fórmula 1.
"Eu nem pensava em contar essa história, estava em paz com a minha vida, encerrei esse episódio dentro de mim em 1996, dois anos depois da morte dele", diz Galisteu à reportagem. "Mas quando foi lançada a série Senna, da Netflix, no ano passado [coprodução da Senna Brands, controlada pela família], comecei a ser inundada de pedidos nas minhas redes para que eu contasse minha história. Se esse movimento não acontecesse de fora para dentro, não teria acontecido de dentro para fora, eu nunca teria esse impulso."
Dirigido por João Wainer, o documentário leva Galisteu ao encontro de pessoas que eram muito próximas de Senna, como seu ex-treinador Nuno Cobra e a família de um grande amigo, companheiro e aliado para todas as horas, Braguinha apelido do empresário Antônio Carlos de Almeida Braga, que acolheu e protegeu Galisteu por mais de um ano depois da tragédia.
Braguinha morreu em 2021, em Portugal, no mesmo lugar em que ela ficou hospedada logo após a morte do piloto, enquanto se recuperava do trauma e escrevia, junto do jornalista Nirlando Beirão, o best-seller "Caminho das Borboletas", lançado no final de 1994.
A série de ficção "Ângela Diniz: Assassinada e Condenada", que estreia nesta quinta (13), dirigida por Andrucha Waddington e com Marjorie Estiano no papel principal, é uma adaptação do podcast "Praia do Ossos", um fenômeno de audiência, lançado em setembro de 2020, produzido pela Rádio Novelo. É uma nova leitura da história no audiovisual, após o filme "Ângela", com Isis Valverde no papel-título, em 2023.
"Praia dos Ossos" é o resultado de uma pesquisa profunda realizada ao longo de dois anos pela criadora e narradora da série de oito episódios, Branca Vianna, junto da pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux e uma equipe que incluía a jornalista Paula Scarpin, além de consultores jurídicos, assistentes de pesquisa e de roteiro. É uma grande produção em relação a outros podcasts investigativos.
"Encontrei a Branca no final de 2018, ela estava mergulhada nessa pesquisa e passamos umas cinco horas conversando sobre esse caso, ouvindo as histórias e na hora pensei: a gente tem que fazer uma série disso", diz Waddington.
"A gente fez o acordo lá atrás, aí, conforme elas iam finalizando os episódios, me mandavam, para eu começar a desenvolver o projeto desta série", afirma o diretor. A HBO Max disponibilizou dois episódios ao público, e um novo entra a cada quinta, num total de seis.
"A gente trabalhou muito para não fazer uma espetacularização do crime, e sim contar a história de uma mulher livre e, ao mesmo tempo, uma mãe, que opta por um estilo de vida que a sociedade não aceita naquele momento e que é brutalmente assassinada, e depois, no primeiro julgamento, considerada quase culpada pelo próprio assassinato", afirma Waddington.
O crime contra a vida de Ângela Diniz foi manchete no Brasil inteiro, um assassinato a sangue frio, na véspera do réveillon, cometido por um homem da alta sociedade contra uma socialite como se chamava quem frequentava as colunas sociais e ficava famoso mais pelos lugares que frequentavam do que pelo que faziam da vida.
A diferença de uma socialite para uma influencer não tem só a ver com a época em que a pessoa fica famosa. A primeira precisa de alguém que a considere como tal, enquanto a segunda é uma criação própria.
Doca Street, o assassino, era dez anos mais velho que Ângela, casado com uma mulher muito rica, e, ao contrário dela, não tinha nenhuma intenção de quebrar as convenções sociais nas quais estava inserido.
"A Ângela era um expoente de um tipo de liberdade que estava se insinuando naquela época. Ela não estava sozinha, mas nem todo mundo entrava naquela carona", diz a psicanalista Vera Iaconelli.
"O Doca era bem um boy lixo, larga a mulher, os filhos, nunca mais volta para ver como eles estão. Era um canalha, não tinha condição nenhuma de conviver com uma pessoa que bancava sua sexualidade, que tinha um certo gosto por escandalizar, de outra maneira que não com a violência", afirma ela, que também é colunista da Folha de S.Paulo.
Já o filme "Cyclone", de Flávia Castro, é mais uma homenagem à personagem de mesmo nome que uma biografia da aspirante a escritora que morreu jovem e deixou pronto um romance e um pedido a seu então marido, o escritor Oswald de Andrade que o publicasse. Um desejo nunca realizado.
"Eles se casaram quando ela já não tinha mais nenhuma esperança de sobreviver, foi uma união 'in extremis', um termo jurídico que significa que um dos dois corre risco de morte", diz Luiza Mariani, a atriz que convive com essa história há 20 anos, e que, agora, vê seu projeto ganhar as telonas.
"O filme parte da pesquisa da Luiza, que passou um tempo enorme com o sonho de contar essa história, mas o que a gente fez foi uma homenagem a essa mulher, que poderia ser a história de outras artistas daquele tempo, que tentaram escrever seu nome no mundo, tentaram ter um espaço na cultura brasileira e não tiveram", afirma a diretora, Flávia Castro.
O filme, com Eduardo Moscovis, Karine Teles e Ricardo Teodoro no elenco, estreia nos cinemas em 27 de novembro após ter passado na Mostra de Cinema de São Paulo e em festivais internacionais na China e na Alemanha.
"Um dos grandes desafios da luta contra o machismo é ver quem conta as histórias", diz a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília. "Essas três mulheres foram nomeadas, o que já é um primeiro passo. E não é coincidência que sejam três mulheres brancas".
"Os sistemas de opressão se entranham de forma tão intensa na vida das mulheres que acabam construindo uma versão da vida vivida por elas. Isso aparece muito claramente no documentário da Adriane Galisteu, que chega ao ponto de dizer não fui eu que matei o Senna", diz a antropóloga.
"Essa é uma disputa por poder. Quem vai contar essa história? A falta de arquivos de mulheres, das histórias das mulheres, é um marco importante do apagamento. Por isso é tão impressionante o documentário da Galisteu, o arquivo dela é ela mesma", afirma Diniz.
"O movimento feminista vai muito bem, obrigada", diz Iaconelli. "A reação a ele é que me preocupa, de tão violenta que é. Mas a gente não pode fazer as duas coisas, lutar pelos nossos direitos e evitar que os homens nos matem. Essa parte depende deles."
MEU AYRTON POR ADRIANE GALISTEU
- Classificação 14 anos
- Produção Brasil, 2025
- Direção João Wainer
- Onde ver Disponível no HBO Max
ÂNGELA DINIZ: ASSASSINADA E CONDENADA
- Quando Estreia nesta quinta (13) no HBO Max
- Classificação 16 anos
- Elenco Marjorie Estiano, Emilio Dantas, Antônio Fagundes
- Produção Brasil, 2025
- Direção Andrucha Waddington
CYCLONE
- Quando Estreia na quinta (27) nos cinemas
- Classificação 14 anos
- Elenco Luiza Mariani, Eduardo Moscovis, Karine Teles
- Produção Brasil, 2025
- Direção Flávia Castro
ASSUNTOS: Arte e Cultura