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Espelho da Colômbia, bairro de Ciudad Bolívar resume desafios de Gustavo Petro

Por Folha de São Paulo

07/08/2022 17h02 — em
Mundo



BOGOTÁ, COLÔMBIA (FOLHAPRESS) - Marta Perdomo, 45, da etnia huitoto, se mudou da região amazônica para Bogotá há oito anos e se estabeleceu em Ciudad Bolívar, um dos maiores e mais populosos bairros da capital colombiana.

"A situação estava muito difícil, o homem branco e suas empresas estão avançando sobre os indígenas, cada vez temos menos recursos e nossos familiares estão sendo mortos pelo conflito colombiano", conta à Folha de S.Paulo. "Aqui eu sabia que teria parentes indígenas, um modo de viver na cidade mais barato, mas a adaptação me custou -demorei dois anos para aprender o espanhol."

Perdomo é monitora no Museu da Cidade Autoconstruída, centro cultural da memória de Ciudad Bolívar. A localidade nasceu nos anos 1940, como assentamento de migrantes deslocados pela violência do enfrentamento entre Exército, guerrilhas, paramilitares e facções do narcotráfico. Hoje, é um microcosmo a resumir desafios do novo governo de Gustavo Petro, empossado presidente neste domingo (7).

Segundo a ONU, a Colômbia é o país latino-americano com o maior número dos chamados "desplazados" internos: 7 milhões. A maioria está em periferias de grandes cidades, como Ciudad Bolívar -com 1 milhão de habitantes espalhados por encostas ao sul da capital. O bairro, que ganhou reconhecimento legal em 1992, também é a localidade de Bogotá com mais venezuelanos; ao todo, indígenas, imigrantes e afro-colombianos compõem mais de 80% da população.

À frente da prefeitura de 2012 a 2015, Petro liderou várias iniciativas na região. A mais simbólica foi um teleférico, que diminuiu de duas horas para 17 minutos o tempo de viagem dali até a primeira estação de metrô e ônibus que leva ao centro --onde boa parte dos moradores trabalha.

Celebrada, a iniciativa até hoje tem o apelido de Petrocable. "Ela garantiu que mais gente pudesse passar tempo com a família, fazer cursos, ter acesso a saúde", diz Luis Manjarres, coordenador do museu, que fica ao lado do ponto final do teleférico, numa praça com wi-fi e acessibilidade.

"A urbanização nos últimos anos foi acelerada. Muito é feito pelas organizações comunitárias, mas a ajuda de prefeitos como Petro e [Enrique] Peñalosa foi essencial." Foi do sucessor do novo presidente, de centro-esquerda, a iniciativa de distribuir tinta para que a população pintasse o bairro. Hoje, ao chegar a Ciudad Bolívar pelo teleférico se vê a montanha cheia de casinhas coloridas e grafites.

Em junho, Petro recebeu o voto de 75% dos habitantes locais. E a expectativa pelo novo governo é grande. "Parece que estamos sonhando desde então. Para mim, ter uma vice negra é uma vitória. Esperamos não despertar desse sonho", diz Francisco Posso, 42, líder da Aliança Afro-Colombiana de Ciudad Bolívar, em referência a Francia Márquez.

A euforia é visível nos relatos e nos pôsteres de campanha, ainda espalhados pelas ruas. Há, porém, quem também tenha receio. Jorge Ariza, 65, é um deslocado interno, que saiu do departamento de Tolima em 2006 devido à violência. "Víamos crianças recrutadas por facções, tínhamos que pagar propina para esses grupos para que eles não destruíssem sua plantação, seu comércio", conta. "Quando vim, eu não queria viver no centro da cidade, isso me mataria. Aqui, posso ter um pouquinho de terra para uma horta, construir uma casa maior. Mas só de modo coletivo podemos pressionar por água, saúde, esgoto."

Ariza é líder comunitário de um assentamento em Ciudad Bolívar, com ruas asfaltadas e casas de tijolo. Mas, ao redor, as habitações são mais precárias; construídas nas encostas com madeira e chapas de metal, estão sempre vulneráveis na temporada de chuvas.

"A vida funciona porque somos organizados. Todos se conhecem e, se falta algo a um vizinho, ajudamos. Aos sábados há festas, fazemos panelões coletivos de comida, com pratos venezuelanos, das regiões da Colômbia, dos indígenas. Mas temos de trabalhar duro", conta, enquanto mostra o sistema que elaborou com estudantes de urbanismo para reciclar a água da chuva.

No Museu da Cidade Autoconstruída, baseado na história oral de moradores vistos e ouvidos em vídeos pelo salão, exibe-se também um passado doloroso. "Acreditamos que construir memória é o que nos faz fortes", diz Manjarres. Há um histórico de massacres locais, como um, de 1992, em que 17 rapazes foram mortos por paramilitares e abandonados numa praça. "É comum que esses grupos visitem bairros vulneráveis para assassinar jovens pobres, como se esse extermínio pudesse diminuir a violência."

Ciudad Bolívar sofre ainda com a existência de um lixão, em que são depositados resíduos de várias partes da cidade. Para a coleta local, os moradores se organizam e trabalham voluntariamente. "O Estado não está inteiramente presente aqui", avalia o coordenador do museu. "Petro nos prometeu resolver isso, combater mineradoras que contaminam nossas montanhas; se não conseguir, será uma decepção."

O discurso encontra eco em analistas que ponderam o peso da alta expectativa em torno do novo presidente, que assume com 64% de aprovação. Mas também em outras partes de Ciudad Bolívar. Francisco Posso diz que o pior que pode acontecer é que o governo aja como os anteriores. "Eles vão precisar de favores políticos, e nós podemos ficar sem nada. Isso é o pior, que não aconteça nada."

Ariza está esperançoso, mas afirma que aprendeu a viver sem o Estado. "Não vou baixar os braços para esperar que me venham oferecer esgoto ou uma cesta de comida." Completa Perdomo: "Já tivemos 500 anos de genocídio --é assim que as distintas etnias aqui pensam. Já não podemos esperar mais".


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