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Colombiana motiva debate de eutanásia na América Latina

Por Folha de São Paulo

24/10/2021 4h02 — em
Mundo



BUENOS AIRES, ARGENTINA, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Único país latino-americano em que a eutanásia está legalizada, a Colômbia vive dias de impasse depois da suspensão do procedimento que interromperia a vida de Martha Sepúlveda. Aos 52, ela sofre de esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa que leva gradativamente à paralisia de todos os músculos e, em consequência, à morte.

Enquanto a colombiana recorre da decisão, seu caso jogou luz sobre o debate em torno da legalização da prática em outros países da região.

A norma, que existe na Colômbia desde 1997 e está regulamentada há seis anos, estabelece que, para ter direito à eutanásia, o paciente deve ser terminal. Uma decisão de julho da Corte Constitucional, porém, ampliou o direito, passando a abranger pacientes que sofrem de enfermidades não curáveis, caso da ELA.

Em um país onde mais de 70% da população aprova o direito à interrupção da vida, segundo pesquisa do instituto Invamer, 157 colombianos já tiveram acesso à prática. Para tal, foram necessárias a anuência consciente do paciente e a aprovação de um médico.

Sepúlveda, que obteve a autorização para levar adiante o procedimento, deu entrevistas a veículos colombianos, nas quais apareceu sorridente e falante, contando como o recurso seria aplicado.

A postura não agradou a setores contrários à eutanásia, e, após reunião de bispos católicos com funcionários do Ministério da Saúde, a decisão foi suspensa horas antes de ser concretizada. Sepúlveda agora recorre na Corte Constitucional e deve obter uma resposta em dez dias.

"O tabu é muito grande em sociedades com forte raiz religiosa. Mas, desde que a lei foi regulamentada, ocorreram mais de 150 procedimentos com normalidade, não houve uma corrida pela eutanásia", diz a advogada colombiana Adriana González. "Sempre penso que as coisas devem ser feitas de modo discreto, porque esse é um assunto muito delicado. O show midiático acabou prejudicando."

Na primeira vez que o procedimento foi aplicado de modo legal na Colômbia, em 2015, González também teve de entrar com um recurso a uma decisão que suspendeu a eutanásia de seu cliente, Ovidio Gonzalez, então com 79 anos, que tinha um câncer de boca. No final, acabou cumprindo-se a vontade do paciente.

Nos demais países da América Latina, a prática é ilegal, mas há sinais de mudança. No México, há um projeto em análise no Congresso. No Chile, onde 72% da população aprova o recurso, a história de Cecilia Heyder, 52, que tem câncer, lúpus e sepse, chegou à Corte Suprema, e o caso comoveu deputados. Agora, a eutanásia depende do Senado --na Argentina também há proposta em andamento.

"Há uma crença equivocada de que, com uma lei de eutanásia, qualquer um pode ir ao médico e pedi-la, mas é aí que entram os regulamentos com os quais temos que trabalhar", diz o médico Carlos Soriano.

Para o também médico Carlos Javier Regazzoni, "a eutanásia é uma aberração, já que os profissionais estudam e fazem um juramento para ajudar os outros, não para aplicar a morte". "Assim, abre-se a porta para algo terrível, que é a eliminação de pessoas com doenças mentais, idosos. Com a pandemia, isso acabou sendo praticado em várias partes do mundo e deve ser evitado".

No Peru, onde a Igreja Católica tem forte influência sobre o Estado, um juiz determinou em março, de modo inédito, que a eutanásia fosse concedida a Ana Estrada, 44, que tem polimiosite, doença sem cura que causa debilidade muscular progressiva. O caso pode abrir um precedente, embora o presidente, o conservador de esquerda Pedro Castillo, diga que não permitirá a legalização da prática.

No Uruguai, uma lei despenaliza o suicídio assistido. Assim, quem ajuda uma pessoa a morrer por compaixão, em tese, não pode ser considerado criminoso. Mas a decisão depende da análise de cada juiz.

No Brasil, onde a eutanásia é ilegal, o caso de Sepúlveda também repercutiu. Para a bioeticista Luciana Dadalto, advogada especializada em direito médico e da saúde, o caso da colombiana "sobe um degrau" na discussão sobre morte digna na América Latina. Até então, o debate sobre o tema girava em torno de pessoas que sofrem de doenças terminais, com prognóstico de até seis meses de vida.

De acordo com Dadalto, a decisão da corte colombiana segue modelo que já existe em países como Suíça, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Canadá. Recentemente, a Espanha também aprovou a eutanásia para doenças graves e incuráveis. Uma das condições é que a pessoa esteja capaz e consciente na hora de fazer o pedido por escrito.

"O tema mexe muito com a gente, que tem uma cultura judaico-cristã muito forte. As entrevistas da Martha Sepúlveda mostram que, a princípio, ela é uma mulher funcional, o que causa espanto, porque mesmo as pessoas que aceitam a eutanásia enxergam essa possibilidade só para quem está moribundo."

Para o advogado Henderson Fürst, presidente da comissão de bioética e biodireito no Conselho Federal da OAB, a decisão da corte colombiana de incluir o sofrimento mental entre as hipóteses para a eutanásia foi surpreendente. "Abre um precedente para a depressão incurável, que ainda é um tabu mesmo onde há outras matrizes culturais. Há pouquíssimos casos de eutanásia para depressão no mundo."

Diferentemente de outros países, uma eventual discussão que avance sobre o direito à eutanásia nunca foi feita no Brasil. A prática é considerada crime de homicídio, com previsão de pena reduzida.

Para Dadalto, o Brasil não tem condições sociais de fazer esse debate. "O país ainda não oferece nem cuidados paliativos de forma universal a doentes graves incuráveis", diz. "O risco é que as pessoas peçam para morrer porque não conseguem ter acesso a um tratamento que controle a dor delas."

Questões políticas, religiosas, morais e ideológicas também são entraves para que a discussão avance. "Em geral, a discussão e a legalização da eutanásia tem acontecido em países mais laicos do que o Brasil. Tem uma relação direta entre laicidade, países autonomistas, que respeitam diferentes projetos de vida. Estamos na contramão dessa história."

Para Fürst, no Brasil há uma máxima que perpassa sentimentos religiosos e até uma compreensão jurídica equivocada de que o princípio da vida está acima de qualquer outra coisa. "Nessa compreensão a gente está falando de um dever de vida, não de um direito à vida, uma dignidade de vida."

As leis latino-americanas

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A eutanásia é proibida, mas a autorização judicial concedida a Ana Estrada, que tem polimiosite, pode abrir precedente

uruguai

Uma lei despenaliza o suicídio assistido, ou seja, quem ajuda uma pessoa a morrer por compaixão não pode ser considerado criminoso.

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A prática é considerada homicídio, pelo artigo 121. O parágrafo 1º, porém, prevê redução de pena se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral.


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