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Bachelet diz que visita à China 'não foi uma investigação' sobre centros de detenção em Xinjiang

Por Folha de São Paulo

28/05/2022 15h34 — em
Mundo



GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) - No último dia de uma rara e polêmica visita à China, a alta comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, declarou neste sábado (28) que pediu a Pequim que reveja suas políticas antiterrorismo para evitar "medidas arbitrárias" contra minorias muçulmanas.

Bachelet afirmou, no entanto, que a viagem de seis dias, que incluiu uma visita a Xinjiang --região autônoma no noroeste onde Pequim é acusada de reprimir a etnia uigur--, não foi uma investigação às políticas de direitos humanos do país, mas uma oportunidade de "conversar francamente" com as autoridades.

"Levantei perguntas e preocupações sobre a aplicação de medidas de contraterrorismo e desradicalização, especialmente sobre o impacto aos direitos dos uigures e outras minorias predominantemente muçulmanas", disse ela, durante uma entrevista coletiva online.

Pequim é acusada de manter 1 milhão de uigures e outras pessoas de minorias muçulmanas em centros de detenção, de esterilizar mulheres e forçar esses cidadãos a realizar trabalhos forçados.

A viagem foi organizada em um "ciclo fechado", com os participantes isolados dentro de uma bolha para evitar a disseminação da Covid-19 e sem a presença de imprensa estrangeira.

A ex-presidente chilena de 70 anos negou que suas reuniões en Xinjiang tenham sido supervisionadas pelo regime chinês. Ela disse ainda que as autoridades da região garantiram o "desmantelamento" da rede de "centros de formação profissional" que as organizações humanitárias qualificam como campos de reeducação forçada.

A primeira visita de um líder de direitos humanos das Nações Unidas à China em 17 anos foi criticada por ativistas e políticos de países ocidentais.

"Alguns países ocidentais deram o seu melhor para atrapalhar e minar a visita da alta comissária, mas o complô não teve sucesso", afirmou o vice-ministro das Relações Exteriores chinês, Ma Zhaoxu, em uma declaração online após a entrevista coletiva.

O diretor executivo da organização internacional Human Right Watch, Kenneth Roth, minimizou o argumento de Bachelet de que sua visita foi valiosa porque ela conseguiu falar abertamente com autoridades chinesas.

"Esse tipo de conversa nos bastidores é exatamente o que o governo chinês quer, sem relatórios públicos, sem pressão para acabar com sua intensa repressão aos uigures e outros", tuitou Roth.

A secretária-geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, afirmou em um comunicado que a visita "foi caracterizada por fotos tiradas com altos funcionários do governo e pela manipulação de declarações da mídia estatal chinesa, dando a impressão de que ela estava diretamente envolvida em uma propaganda altamente previsível" do governo chinês.

Após uma reunião por vídeo que Bachelet teve com o líder Xi Jinping, a mídia estatal sugeriu que ela apoiava a visão da China sobre os direitos humanos. Seu gabinete esclareceu, porém, que seus comentários não continham um endosso direto ao histórico da China nessa questão.

Vazamento de documentos e fotos de Xinjiang eleva pressão por sanções A divulgação na última semana de milhares de documentos e imagens vazados de distritos policiais de Xinjiang elevou a pressão para que a comunidade internacional imponha sanções econômicas e diplomáticas ao regime liderado por Xi Jinping.

A província de 1,6 milhão de km² --área semelhante à do Amazonas--, afinal, configura um importante berço financeiro: dali, saem 19% da produção global de algodão, 25% dos derivados de tomate e ao menos 40% do polissilício, matéria-prima da indústria eletrônica e de painéis solares, segundo dados do grupo de pesquisa C4ADS, de Washington.

"Os governos podem, no mínimo, garantir que não sejam cúmplices desses abusos de direitos humanos ao aprovar leis que proíbam as empresas de ter, em suas cadeias de suprimentos, produções que violem os direitos uigures", diz à Folha Koen Stoop, coordenador de políticas do Congresso Mundial Uigur na União Europeia (UE).

Mas Stoop, membro dessa rede global de organizações uigures, povo muçulmano com fortes laços na Ásia Central, duvida que o vazamento de grandes proporções, publicado inicialmente em veículos como BBC e Le Monde, vá de fato mudar a postura dos governos. "Esperamos, é claro, que seja um alerta para a comunidade internacional, mas a verdade é que se trata do terceiro, quarto ou quinto alerta."

Apelidados de "Arquivos da Polícia de Xinjiang", os documentos foram obtidos em dois condados majoritariamente uigures em Xinjiang. A província de 25 milhões de habitantes, mostram dados oficiais, conta com 10,9 milhões de pessoas da etnia han --a predominante na China-- e 11,6 milhões de uigures, além de outras minorias muçulmanas.

São mais de 2.800 fotos de uigures detidos, dezenas de documentos, sendo alguns de figuras do alto escalão do regime chinês, e 23 mil arquivos de pessoas presas e colocadas em campos de reeducação. Todos datam de 2017 a 2018, anos iniciais do avanço de Pequim.

A importância, explicam os envolvidos, é ser o primeiro pacote de informações que demonstra a natureza repressiva dos campos de reeducação. Entre as razões para a detenção de muitos que aparecem nos arquivos está o envolvimento no que é descrito como atentados terroristas cometidos no passado, desde a década de 1980.

Memetimin Memet, 35, por exemplo, foi sentenciado a dez anos de prisão. Em sua ficha, consta: "O suspeito aprendeu a prática de culto e das escrituras [islâmicas] por cerca de um mês em 1994; ele deixou a barba crescer por cerca de três meses, de maio a agosto de 2006."

"Grande parte do que o regime tem tentado fazer é pegar qualquer coisa que as pessoas tenham feito no passado e tomar isso como uma indicação de que elas precisam ser reeducadas ou punidas", explica Adrian Zenz, da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo, think tank com sede nos EUA. "E, muitas vezes, a suposição é de que toda a família tem problemas, de modo que parentes também são detidos."

Zenz, um antropólogo alemão, é um dos principais nomes que estudam a situação em Xinjiang. Foi ele que recebeu os milhares de arquivos de uma fonte anônima que não quis ser identificada por temer represálias e, junto a uma equipe, os traduziu e organizou. Parte do material mostra imagens de itens apreendidos pela polícia por serem considerados ilegais. Ali estão tapetes de oração, hijabs --véu islâmico que cobre o cabelo e o pescoço-- e versos manuscritos do Alcorão.

Outro documento traz uma avaliação feita pelo ministro da Segurança Pública em junho de 2018, após visitar Xinjiang. Zhao Kezhi diz que a administração local foi bem-sucedida no combate ao que descreve como terrorismo "a despeito da situação de detenções severamente excessivas em relação à capacidade das prisões locais".

Pesquisadores como Adrian Zenz e organizações de direitos humanos projetam que, desde 2017, de 1 a 3 milhões de uigures tenham sido detidos em Xinjiang, tanto em prisões quanto em campos de reeducação. O ministro Kezhi, no mesmo documento, diz que, desde o ano anterior, "mais de 20 mil gangues terroristas perigosas foram destruídas, o que é mais de cinco vezes o total dos últimos dez anos".

Procurada, a embaixada chinesa no Brasil disse que o país já esclareceu, diversas vezes, "as acusações infundadas contra a China em relação à chamada 'questão dos direitos humanos' em Xinjiang". E mencionou respostas dadas pelo porta-voz da chancelaria do país, Wang Wenbin, durante entrevista coletiva na terça (24).

Na ocasião, Wenbin disse que o recente vazamento seria mais um caso de difamação de Xinjiang por forças anti-China. "É exatamente o mesmo truque que eles costumavam jogar antes. As mentiras e os rumores que espalham não podem enganar o mundo nem esconder o fato de que Xinjiang goza de paz e estabilidade, sua economia está prosperando e seu povo vive e trabalha em paz."

Zenz vê nas sanções econômicas a Pequim e a autoridades chinesas a forma mais eficaz de fazer com que o regime mude a postura em relação aos uigures, que contam com uma diáspora cada vez maior na Turquia. "Uma imagem fala mais que mil palavras, e a propaganda chinesa costuma dizer 'para crer, venha aqui e veja por si mesmo'. Agora, mesmo não indo até lá, vemos o que está acontecendo."

Outro documento dos "Arquivos da Polícia de Xinjiang" é uma orientação interna sobre como os agentes de segurança devem agir em caso de rebeliões nos centros de reeducação. Os guardas são orientados a disparar tiros de advertência caso os internos não aceitem ordens verbais. E, se isso não funcionar, podem atirar para matar.

Aproximadamente 2% da população chinesa é muçulmana, segundo projeções do Pew Research Center. Outros 18,3% são budistas e 5,2%, cristãos. Cerca de 22% pertencem ao que o centro chama de "religiões tradicionais", aquelas estreitamente associadas a um grupo étnico. Mais de 51,8% dos chineses não teriam nenhuma religião.

A pressão cresce não apenas na arena econômica, mas também na cobrança de mecanismos de investigação e justiça --não à toa, o vazamento foi publicado justamente na semana em que Bachelet está na China. Dezenas de ONGs internacionais têm pedido que a alta comissária assuma postura incisiva em relação ao tema.

"O mandato de Bachelet tem sido marcado pela ausência de diplomacia pública sobre a China; quando se compara isso com as outras crises com as quais ela teve de lidar, como Mianmar e Ucrânia, a diferença na linguagem e na frequência é imensa", afirma o brasileiro Raphael Viana David, diretor do programa para a Ásia do Serviço Internacional de Direitos Humanos (ISHR), baseado em Genebra, na Suíça.

Bachelet negociava uma visita à China desde 2018. Pressionada por organizações para realizar um monitoramento remoto da situação em Xinjiang diante da demora na negociação, ela assim o fez. O documento, relata Viana, estava pronto em setembro passado. Até hoje, no entanto, o material não foi disponibilizado ao público.

Organizações como a ISHR cobram não apenas a divulgação do relatório, mas também que a chilena faça com que a oportunidade histórica da recente visita seja o pontapé para processos internacionais de justiça, como investigações de possíveis crimes contra a humanidade ou genocídio cultural contra os uigures.

Ao final, a expectativa seria criar um mecanismo de monitoramento e investigação do assunto no guarda-chuva da ONU. Algo assim, porém, teria de ser aprovado pela Comissão de Direitos Humanos --ou seja, obter o voto favorável dos países-membros. "Aí entra o desafio, porque a China pressiona diversas dessas nações", segue Viana --o Brasil, que tem Pequim como principal parceira comercial, integra o conselho.


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