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Licença da CBF embala sonhos de quem não jogou bola e sonha em ser técnico

Por Folha de São Paulo

23/01/2022 10h03 — em
Esportes



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os dias de trabalho de Edivan Coelho, 30, começam cedo e terminam tarde. Professor em academias e personal trainer na Baixada Santista, ele junta economias para realizar o sonho que o domina desde que escutou futebol pelo rádio do vizinho, aos seis anos de idade, em Registro, interior paulista: ser técnico de futebol.

"Já gastei por volta de R$ 20 mil nos licenciamentos. Eu guardo todo o dinheiro que posso para os cursos. Com a pandemia, parte do conteúdo passou a ser online. Mas, além do preço das licenças em si, há o traslado para Teresópolis [no Rio, onde acontecem as aulas presenciais], a hospedagem e a alimentação. É difícil", constata.

Criada em 2016, a CBF Academy é o braço educacional da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e é responsável pela formação dos profissionais. Já emitiu 4.265 licenças desde a C, a mais simples e voltada para quem dá aula em escolinhas, até a Pro, que possibilita participar de competições da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol).

A licença Pro é o próximo objetivo de Edivan. Por ser a maior graduação, tem o valor mais salgado. São R$ 19,9 mil. Para obter a licença A no ano passado, ele pagou, apenas pelo conteúdo, R$ 10,5 mil. Ele já havia feito a B. Custou R$ 7,7 mil.

"Só vou poder fazer o Pro quando conseguir emprego em um clube com salário que me permita custear as mensalidades. Caso contrário, não dá", constata.

É a mesma constatação feita por treinadores em início de carreira ou estabelecidos nas principais divisões do futebol brasileiro. Quem está nas grandes equipes não tem nenhum problema em pagar pelas aulas. Mas, para quem não tem muitos contatos, está fora dos grandes clubes ou atua nas categorias de base do interior, é bem mais complicado.

"É caro. Eu estou indo para a minha sexta Série A do Campeonato Brasileiro. Para mim, não há nenhum problema. Os cursos não são acessíveis para todos. Gente da Série C ou Série D, por exemplo, tem dificuldade", afirma Jair Ventura, atual técnico do Juventude e com passagens por Botafogo, Santos, Corinthians, Sport e Chapecoense.

"É elitizado. Torço para que se encontre uma solução para isso mudar", concorda Daniel Paulista, treinador do Guarani.

A CBF Academy tem consciência da questão do preço, mas é uma encruzilhada. Há o custo envolvido na realização dos cursos, que não são apenas para treinadores. A entidade é uma das responsáveis pela popularização do cargo de analista de desempenho. Ventura afirma que o nível do conteúdo oferecido nas aulas não deixa nada a desejar em relação ao da Uefa, referência mundial.

"Esse é um tema sensível. A gente conhece a origem do nosso público e as condições. É eclético. A gente sabe ser um desafio. Mas, na outra ponta, existe a estrutura de custo. Você tem uma equação que precisa parar de pé. Temos produtos que partem de um preço de R$ 500. Também há política de descontos variados e estratégia específica para incluir mulheres", explica Michel Mattar, coordenador geral da CBF Academy.

Os técnicos ouvidos pela Folha, em início de carreira ou não, concordam que o licenciamento da CBF Academy mudou o horizonte da profissão no país. Abriu a possibilidade real de pessoas como Edivan, sem passado ou padrinhos, entrarem no futebol, e deu um norte para quem já estava no mercado.

"São cursos que deram uma luz a ser seguida porque, até então, não existia nada. Agrega muito e provoca uma troca de ideias", completa Daniel Paulista.

"Eles ajudam e apresentam conteúdos de qualidade, mas não é um curso para formação de treinadores como muita gente acha. É ferramenta e é importante. Mas a formação exige décadas. O processo é contínuo. Tanto assim que o licenciamento [da CBF Academy] precisa ser renovado a cada dois anos", lembra Leandro Zago, 40, contratado para comandar o Botafogo na Série A1 do Paulista.

A CBF Academy avalia que a formação de técnicos é um movimento global de que o Brasil começou a tomar parte em 2016. Os licenciamentos emitidos pela entidade não habilitam os profissionais a trabalhar na Europa. A esperança declarada é que isso mude no futuro.

A preocupação, desde o início da pandemia, é investir em plataformas online, o que pode baratear os custos para os matriculados. Não haveria gastos com transporte e hospedagem. Para economizar no processo para obter a licença A, Edivan Coelho dividiu quarto em Teresópolis com outras pessoas.

"Em 2022, queremos ter mais de 60 turmas em diferentes cursos. O mundo digital nos permitiu incluir pessoas que até então não tinham condições de participar. A gente tem alunos no Japão, na Europa, no Oriente Médio e na África. O custo logístico para o aluno estar em um local [físico] custa tanto quanto o valor do curso ou mais. No mundo digital, em que tudo está focado no conteúdo, na inteligência, isso barateou muito", observa Mattar.

É nisso que acredita Edivan Coelho. Para ser alguém importante como técnico, ele aposta na formação, no conhecimento e em suas licenças.

Filho de mãe faxineira e pai porteiro, ele contou com a ajuda de bolsas de estudo para se formar em educação física em Santos. Curso que escolheu porque viu como entrada para o futebol. Fez estágios no São Vicente AC e no EC São Bernardo, comandou a equipe profissional do Amparo aos 25 anos e dirigiu o Linense na Copa São Paulo de 2020. Agora lhe resta buscar outra oportunidade.

"Tive ofertas para trabalhar, mas o salário era muito, muito pequeno. Não dava para me manter", lembra.

É batalha que trava também contra uma lembrança. Não gosta de dar detalhes, mas diz que, quando começava a buscar trabalhos em times de futebol, há alguns anos, procurou ajuda de outro treinador. A primeira coisa que o colega fez foi olhar para a cor da pele de Edivan.

"Ele perguntou para mim quantos treinadores negros existiam na Série A do Brasileiro."

O novato respondeu que, na época, não se lembrava de nenhum.

"Sua cor não vai deixar você chegar", foi a previsão que ouviu.

"Cheguei em casa, fui tomar banho e chorei para caramba. E decidi que aquilo não aconteceria. Eu vou ser um dos grandes treinadores do futebol brasileiro", prometeu Edivan Coelho para si mesmo.


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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