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Matar é um componente estrutural do homem


Por Flávio Lauria

19/07/2022 15h21 — em
Espaço Crítico


Imagem: Ilustrativa/Pixabay

Brigam a criança e o adolescente, brigam o jovem e o adulto, e às brigas dos povos chamamos guerra. Há os que optam pela guerra para resolver seus conflitos. É uma opção, mas a mais insana.

É como crianças e adolescentes que para resolver seus mal-entendidos partem para a briga. A briga e a guerra nunca podem ser consideradas soluções definitivas de um conflito. Tal solução apenas põe o conflito debaixo das cinzas esperando o primeiro golpe de vento para desandar em incêndio inesperado. Olhando a linha do tempo do ser humano tem-se a impressão de que matar o semelhante é um componente estrutural do homem.

Por um motivo banal Caim mata o irmão Abel. A fumaça de seus sacrifícios era o sinal que escondia o ódio fraterno, que ardia no coração de Caim.

Foram ao campo, e foi no campo, junto ao seio da mãe terra, que se tem notícia da primeira batalha. Ainda hoje é nos campos que se fazem as guerras seja, pelos sem-terra, seja pelas armas. Nada mudou desde Caim e Abel, a não ser as armas. 

Vivemos um momento confuso e doloroso, mas não novo. O profeta, à semelhança de um repórter de hoje, escreve: "Se saio para o campo, eis as vítimas da espada; se volto para a cidade, eis os torturados pela fome".

A história do povo eleito é uma longa trajetória de mortes. Como tudo era visto sob o olhar de Javé, os governantes se inocentavam dizendo que tudo era ordem divina e era Deus quem ganhava as batalhas. Frente a certas mortes nos comovemos e nos revoltamos, mas frente a outras ficamos anestesiados. O que há em nós que nos suscita consciência tão diferente perante fatos iguais de agressão à vida? Nunca se investiu tanto a favor da vida como hoje e, no entanto, a vida nunca valeu tão pouco.

Matam-se os pais porque discordam do namoro, mata-se por um tênis ou por um boné, mata-se o colega porque se atravessou no meu caminho. Parece que a guerra, a morte coletiva, é necessária para que o homem se dê conta do ainda não. Foi como vítima de guerra que o povo hebreu começou a se questionar sobre a origem do mal. Foi no exílio, numa terra estranha, como vencidos e escravos, entre gritos de dor, que os hebreus refizeram a gênese do sofrimento humano. Até chegar à plenitude dos tempos, chegada do Messias, o Povo Eleito provocou inúmeras guerras e sofreu outras tantas.

Será que para preparar um espaço para o Messias não havia outra maneira de conduzir a história? Parece que a guerra é um componente necessário, embora absurdo, para que a história avance. Assim aconteceu para preparar a vinda do Messias, assim aconteceu depois para justificar a difusão de sua mensagem. Será que os benefícios oriundos das guerras são suficientemente válidos para justificar as mutilações e as mortes? É a lógica da guerra atual. São assim as escolhas da ambiguidade humana: para que uns possam mostrar todo o seu altruísmo, outros têm de produzir mutilados de guerra.

Os senhores da guerra nunca são mutilados. São sempre cuidadosamente preservados eles, filhos e seus animais, enquanto seres humanos são por eles considerados menos que animais. "A guerra é um massacre entre pessoas que não se conhecem, para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram" (Paul Valery).

Será que a dor é a porta pela qual necessariamente tem que passar o ser humano para ser ele mesmo? Vida e dor tecem o pano de fundo sobre o qual o homem constrói seu caminho para a vida porque ser humano é ter sofrimento.

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