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Delator da Americanas disse que recuperação judicial era plano B

Por Folha de São Paulo

04/08/2025 16h45 — em
Economia



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A delação mais recente do caso Americanas, feita pelo ex-diretor financeiro Fabio Abrate, levantou hipóteses de que haveria uma estratégia para lidar com a crise na varejista preparada antes da divulgação do fato relevante de 11 de janeiro de 2023 que trouxe à tona o escândalo contábil da companhia. O cenário descrito por ele é negado pelo trio de bilionários acionistas da empresa e destoa das principais conclusões levantadas pelas investigações do caso.

O depoimento de Abrate foi dado no ano passado, mas só veio à tona quando o MPF (Ministério Público Federal) concluiu o documento da denúncia em março deste ano.

Em sua delação, Abrate afirmou que o plano inicial era negociar com os bancos e dar baixa contábil nos problemas do balanço da companhia, o que reduziria os custos para o trio de bilionários Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles, controladores da varejista.

A situação, porém, saiu do rumo, segundo o ex-diretor, e foi preciso acionar o que ele chamou de plano B: a recuperação judicial.

"Eles tinham uma estratégia que, basicamente, era a baixa contábil, que nem as outras [empresas Kraft Heinz e ALL] fizeram", disse Abrate em trecho da delação ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso.

As empresas de alimentos Kraft Heinz e logística ALL já fizeram parte dos investimentos dos três bilionários. Em 2019, a Kraft realizou baixa contábil de US$ 15,4 bilhões, o que prejudicou seus resultados e levantou questionamentos da SEC (a comissão de valores mobiliários americana). Em 2013, a ALL também teve prejuízo pela baixa contábil de ativos na Argentina.

A baixa contábil é um procedimento pelo qual um ativo é retirado do balanço patrimonial, deixando de ser reconhecido contabilmente devido a perda de seu potencial de geração de benefícios econômicos, mas a contrapartida é um reconhecimento de despesa ou perda no resultado da companhia. Pode ser um estoque obsoleto ou uma dívida incobrável, por exemplo.

Na delação, Abrate cita, sem dar provas, um suposto envolvimento de Sergio Rial no planejamento da estratégia, o que o executivo nega.

Rial, que assumiu a presidência da Americanas em 2 de janeiro de 2023, renunciou no dia 11, quando foi divulgado o fato relevante sobre as inconsistências contábeis. No momento da renúncia, ele assume o posto de assessor do trio de bilionários na crise da varejista, informação que também foi anunciada no fato relevante. Segundo Abrate, Rial, já na função de assessor, mencionou os casos das baixas contábeis da Kraft e da ALL na conferência promovida pelo banco BTG para investidores no dia 12.

"Ele [Rial] falou. Ele tinha instrução para falar. Ele não falou de bobão. Ele sai [do cargo de CEO da Americanas e assume] como assessor do trio naquele fato relevante. Ele não ia falar de Kraft Heinz, de ALL, se fosse algo contra os caras. Era meio que para falar: 'Galera, isso acontece. Acontece nas melhores famílias. E aconteceu na Americanas'. Então, o contábil não é problema. E o negócio do risco sacado... então eles tinham uma estratégia, que era negociar com os bancos. Só que deu errado essa estratégia, porque os bancos não receberam bem a notícia", disse Abrate ao MPF.

Quando Abrate faz tal afirmação no depoimento, não fica claro se ele tinha provas de que a baixa contábil foi instruída pelo trio. A lacuna, porém, não foi explorada pelo procurador Paulo Sergio Ferreira Filho, que faz em seguida uma pergunta sobre outro assunto, relacionado ao afastamento dos executivos da antiga diretoria.

Na denúncia apresentada pelo MPF em março sobre o caso, o órgão transcreve trechos da delação em que Abrate menciona como se deu o planejamento para tentar dar baixa contábil nas fraudes. O MPF reproduz uma das falas incompleta. "Eu acho que as pessoas foram se desesperando como se o Rial fosse descobrir uma coisa que ele não soubesse", disse Abrate.

No trecho da delação ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso, Abrate complementa: "A minha leitura, talvez um pouco mais otimista, era que ele [Rial] vinha para resolver. O cara veio de banco, e ele sabia do risco sacado. E o VPC [verba de propaganda cooperada], para mim, era: 'cara, baixa contabilmente e vamos embora'. Era o histórico do controlador. E no caixa, que era o que afetaria o bolso do credor, o Rial era o melhor interlocutor com todos os bancos. Então, esse cara [Rial] veio encomendado. Até porque o Rial era um bicho muito diferente da gente. Muito diferente do Beto [Sicupira]. A gente era low profile. O Rial era midiático. Era vocal. Para o Beto ter escolhido o Rial, na minha visão, e topado trabalhar com uma característica tão diferente da dele, é porque o Rial tinha uma encomenda. E ele era o melhor cara para executar aquilo ali. Essa era a minha visão".

Mecanismos comuns no varejo, o contrato de VPC é um reconhecimento de créditos que pode melhorar o resultado do ponto de vista contábil elevando a receita, e a operação de risco sacado envolve antecipação de pagamentos a fornecedores com crédito bancário. Porém, após o escândalo, foram apontados pela nova gestão da Americanas como instrumentos usados pela antiga diretoria para a fraude.

Em março, o MPF apresentou denúncia contra 13 ex-executivos e ex-funcionários da Americanas, dizendo que o conselho de administração e os acionistas foram ludibriados por eles.

Segundo a hipótese relatada por Abrate, o plano de negociar com os bancos sairia mais barato para o trio. Em novembro de 2023, o trio fechou acordo com os bancos credores se comprometendo a injetar R$ 12 bilhões na empresa.

"Eles já tinham o dinheiro. Se eles não fizessem esse movimento, o cheque seria de 40. Então, eu tenho o dinheiro, eu entendo, mas eu vou resolver pagando menos, porque a cabeça dos caras é uma cabeça financeira. Então, dane-se o quanto vai sangrar, dane-se o risco de imagem. Eu tenho o dinheiro do mundo para me cercar do que eu preciso e eu vou pagar menos. Então, essa foi a saída de resolver o problema da companhia pagando menos", disse Abrate.

Em seguida, o delator também descreve sua tese em relação ao afastamento de Miguel Gutierrez da presidência da Americanas.

"Foi o seguinte: ‘Cara, você [Gutierrez] teve todo o tempo do mundo e não resolveu. Então, estou te tirando à força, porque se você levanta o dedo, você, Miguel, você é Beto’. Miguel e Beto eram a mesma pessoa. Foram 20 anos, 30 anos [que o ex-CEO passou na empresa]. ‘Então eu preciso tirar você, botar um outsider que queira cumprir esta função’, disse.

Nas palavras de Abrate, Rial teria melhor perfil para "levantar o dedo".

"Quais são as características de um cara que cumpriria com essa função? Um cara que fosse do métier, ou seja, que já soubesse, mesmo que parcialmente. Que gostasse de dinheiro. O Rial gostava muito de dinheiro. E que fosse midiático. O Rial era midiático. ‘Então, cara, você [Rial] já conhece, você sabe como lidar, seja recuperação judicial, seja negociar com bancos. Se o plano A der errado e a gente for para recuperação judicial, você também já sabe como conduzir", disse o delator.

Abrate também não diz se tinha provas disso, mas o procurador Ferreira Filho, nesse momento, o interrompe e faz uma pergunta sobre as circunstâncias da demissão dos diretores.

Segundo o delator, no próprio dia da divulgação do fato relevante já havia um rascunho de uma tutela antecipada para impedir o bloqueio de bens da varejista pelos credores. "Ele [Rial] saiu da reunião [com os bancos após o fato relevante] e mandou executar o troço que era para impedir [o bloqueio], porque ele sabia que os bancos iam vir com força. A tutela já culminava em uma recuperação judicial, que seria o plano B", disse Abrate.

Questionada pela Folha de S.Paulo sobre tal afirmação, a Americanas diz em nota que, diante do cenário apresentado naquele momento, avaliou e se preparou para a tomada de todas as medidas judiciais que garantissem a continuidade das suas atividades.

A reportagem perguntou se o MPF voltou a questionar o delator sobre as versões dele, mas o órgão disse que o caso está sob sigilo. A defesa de Abrate não comenta.

Procurado pela reportagem, Rial respondeu, em nota enviada por sua assessoria, que desconhece a íntegra da delação. Segundo ele, são ilações caluniosas, que ele repudia e que já foram desmentidas por inúmeras provas pela Polícia Federal e pelo MPF.

A assessoria dos acionistas também diz, em nota, que eles desconhecem a delação e repudiam ilações de que tivessem conhecimento dos ilícitos. As falas de Abrate não fazem sentido economicamente e contradizem provas, segundo o comunicado, que cita documentos sobre a contratação de Rial, com ganhos dependentes de valorização futura das ações, e afirma que isso seria impossível em um cenário de uma baixa contábil bilionária.

Leia a íntegra dos comunicados:

"A assessoria de Sérgio Rial esclarece que ele não tem conhecimento da íntegra da delação realizada por Fábio Abrate, tampouco de qualquer dos seus trechos citados pela Folha de S.Paulo. A despeito disso, Sérgio Rial repudia com veemência as ilações caluniosas mencionadas na reportagem, todas elas já desmentidas por inúmeras provas colhidas pela Polícia Federal e pelo MPF. As investigações são incontestes em demonstrar que a antiga diretoria da Americanas comandou uma das maiores fraudes já ocorridas no mercado de capitais, ocultando sistematicamente a difícil situação financeira da companhia. E não foi diferente com Sérgio Rial. Diversas trocas de mensagens encontradas pelos investigadores mostraram Fábio Abrate combinando, por detrás dos panos, com os ex-diretores esconder de Rial os reais resultados da empresa, camuflados por complexos mecanismos fraudulentos. Os acontecimentos que redundaram no "fato relevante" somente foram conhecidos por Sérgio Rial após ele assumir o cargo em 2 de janeiro de 2023, juntamente com o novo CFO das Americanas, quando dois membros da ex-diretoria de Miguel Gutierrez lhes reportaram que o balanço apresentava inconsistências contábeis. Para além disso, a ideia de prestar um auxílio emergencial, uma ajuda inicial no momento que eclodiu a crise ante a divulgação do fato relevante, foi o que o classificou como assessor, mas isso não durou nem sequer uma semana. A profundidade que oportunisticamente quer se dar ao termo está totalmente distinta da realidade e de tudo que já foi apurado. Portanto, as alegações irresponsáveis do "ex-tesoureiro" são jogadas a partir de seu evidente interesse em construir uma cortina de fumaça sobre os seus próprios malfeitos, sendo desnecessários mais comentários ante a obviamente de sua intenção em dissimular a verdade já devidamente comprovada pelas autoridades e por delações da contadora e do próprio diretor financeiro, que, à época da fraude, eram seus subordinados."

"A assessoria dos acionistas de referência registra, antes de tudo, que eles não têm conhecimento do teor da delação noticiada pela reportagem e repudiam firmemente qualquer ilação de que eles tivessem conhecimento dos ilícitos praticados pela antiga diretoria da Americanas. Sugerir isso, além de não fazer qualquer sentido econômico-financeiro, vai de encontro às inúmeras provas já colhidas pelas investigações, inclusive as conduzidas pelo MPF e pela Polícia Federal no âmbito da Operação Disclosure. Os acionistas de referência, nos 10 anos anteriores à descoberta da fraude, investiram cerca de R$ 1,6 bilhão a mais na Companhia do que dela receberam em dividendos. Além disso, aportaram R$ 12 bilhões para salvar a Companhia em recuperação judicial, quando a Americanas já estava com o seu patrimônio líquido negativo. Ou seja, não tiverem absolutamente nenhum ganho financeiro com a fraude, nem antes nem depois de sua descoberta, muito diferente da antiga diretoria, que recebeu centenas de milhões em bônus e vendas de ações com base em resultados falsificados, conforme já apurado pelas autoridades. Portanto, trata-se claramente de estória sensacionalista, que há muito a antiga diretoria tenta fomentar, para desviar a atenção de seus malfeitos. Tal estória já foi, inclusive, cabalmente desmentida por inúmeras provas colhidas no curso das investigações. Por exemplo, pelo documento atestando as condições acordadas com Rial para sua contratação, evidenciando que a maior parte dos ganhos do novo CEO dependeria de substancial valorização das ações nos anos seguintes (o que seria impossível num cenário de uma baixa contábil bilionária). Além disso, os investigadores localizaram diversas trocas de mensagens entre Fabio Abrate e outros ex-diretores combinando como esconder a real situação financeira da companhia até o último minuto dos membros do Conselho e Comitês, do mercado e também do próprio Rial. Por essas e outras várias provas reunidas após mais de dois anos de extensas investigações, em que foram analisados milhares de documentos e realizadas diversas oitivas pela PF e pelo MPF, as dezenas de autoridades que investigam o caso são uníssonas em reconhecer que a fraude perpetrada pela ex-diretoria era deliberadamente ocultada do Conselho de Administração e de Sérgio Rial. Assim, qualquer insinuação diferente das evidências reunidas não passa de ilação irresponsável, que não apenas ultraja autoridades responsáveis pelas investigações, mas também difama e calunia os maiores prejudicados pelos atos criminosos."

"A Americanas informa que não teve acesso à delação do ex-diretor Fabio Abrate e, diante disso, não tem como se manifestar a respeito de informações ou referências ao conteúdo da mesma. Em relação à abordagem sobre medidas judiciais avaliadas na data de 11/01/23, a Companhia relembra que, diante do cenário apresentado naquele momento, avaliou e se preparou para a tomada de todas as medidas judiciais que garantissem a continuidade das suas atividades, bem como sua responsabilidade social como um gerador de empregos e ator relevante da economia brasileira. A Americanas reitera sua confiança nas autoridades que investigam a fraude de resultados da qual foi vítima."


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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