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Punição a anúncio racista gera divergência na Promotoria de MG

Por Folha de São Paulo

24/06/2021 14h36 — em
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BELO HORIZONTE, MG, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O ano era 1924, pouco menos de três décadas antes que o racismo fosse considerado contravenção -infração penal de menor gravidade- pela Lei Afonso Arinos, de 1951.

À procura de uma cozinheira "perfeita", "de forno e fogão", uma família inglesa anunciou a vaga, na época, no extinto jornal A Gazeta, deixando claro, no pequeno quadradinho, que a única restrição era que a candidata não fosse "de côr".

Quase um século depois, o combate à discriminação racial amadureceu. Em 1989, a Lei Caó estabeleceu que impedir ou dificultar o acesso a lugares e empregos em razão de cor ou raça é crime de preconceito, inafiançável e imprescritível, sujeito à prisão.

Mas não foi essa a primeira interpretação do Ministério Público de Minas Gerais em relação a um anúncio da empresa Home Angels Centro Sul, de 2019, que impedia candidatas "negras e gordas" de concorrerem a dez vagas para cuidadoras de idosos.

O caso veio à tona quando Fernanda Spadinger, dona da empresa recrutadora Leveza do Afeto, repassou o anúncio no WhatsApp. A cuidadora negra Eliangela Carlos Lopes, 43, se interessou pela oportunidade.

Com muito mais do que os três meses de experiência pedidos, ela argumentou com Fernanda que não era certo barrar candidatas por características físicas. A empresária respondeu que tinha apenas reencaminhando o anúncio e que a exigência era da contratante.

Eliangela fez, então, uma queixa à polícia, que abriu uma investigação.

No inquérito, Taís Oliveira Arantes, dona da Home Angels Centro Sul, disse que desconhecia o anúncio, segundo ela, enviado por Suelen Andrade, chefe de recursos humanos da empresa na época.

Mas perícias nos celulares das envolvidas identificaram, que a própria Taís havia mandado mensagem para Suelen pedindo que não contratasse mais "funcionárias de cabelos dread/black power ou do gênero" nem "funcionárias negras (azuis)".

Antes disso, em abril, Suelen tinha deixado clara a política da empresa para Fernanda. Ao solicitar dez cuidadoras, ressaltou: "não podem ser negras, gordas, feias, mas não precisam ser lindas".

No celular corporativo da empresa, os investigadores encontraram ainda um áudio em que a emissora (não identificada) barrava uma candidata: "não, não, é a outra, sem ser essa negra. Essa aí de cabelão, se mandar ela, minha filha, manda ela não! Ela vai surtar com ela. Vai falar que é um homem, que ela é isso... um gorila. É a outra, a outra novinha de cabelo lisinho, essa não".

Em fevereiro do ano passado, a delegada Stefhany Karoline Martins Gonçalves indiciou Taís, Suelen e Fernanda por crime de racismo.

As duas primeiras foram consideradas responsáveis por "negar ou obstar emprego em empresa privada'', crime cuja pena é reclusão de dois a cinco anos. Fernanda foi indiciada por exigir, em anúncios, "aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências", delito que prevê multa e prestação de serviços comunitários.

O caso foi, então, remetido ao Ministério Público.

O promotor Mário Konichi Higuchi Júnior teve uma visão diferente. Propôs que Tais e Suelen fossem responsabilizadas pelo mesmo delito de Fernanda. O parecer sugeria que as três pagassem R$ 5.000 em indenização e prestassem serviços comunitários por quatro meses.

Após o parecer do promotor, o juiz Leonardo Vieira Rocha Damasceno enviou o caso ao Juizado Especial Criminal, "por se tratar, em tese, de delito de menor potencial ofensivo".

Mas, novamente, houve divergência de interpretação. Patrícia Estrela de Oliveira Vasconcelos, a promotora que assumiu o caso no Juizado Especial, considerou que o processo deveria ser discutido na vara comum.

"Em razão da pena máxima prevista, este juízo é absolutamente incompetente para o processo de julgamento do mesmo". Ela ressaltou que, segundo a lei, infrações de menor potencial ofensivo, que podem ser analisadas pelo Juizado Espeical, são as que preveem pena máxima inferior a dois anos, acrescida ou não de multa.

O caso foi, então, enviado à Procuradoria-Geral de Minas, que deverá emitir seu parecer sobre que instância deve julgar o caso, indicando seu entendimento sobre a gravidade da infração.

Procuradas pela Folha, Taís e Fernanda não concederam entrevistas. A reportagem não conseguiu contato com Suelen. A empresa franqueadora da Home Angels Centro Sul declarou que não foi citada na ação e que, na época do anúncio, tomou as devidas providências.

Situações como a da Home Angels têm levado o senador Paulo Paim (PT) a lutar nas últimas décadas por penas mais duras em caso de racismo. Em novembro de 2020, ele apresentou um projeto de lei para equiparar, por exemplo, os crimes de injúria racial e racismo.

"Hoje no Brasil tudo é injúria", afirma Paim. "A pessoa acaba pagando cestas básicas ou recebendo uma advertência como se tivesse 'apenas' ofendido e não cometido um crime".

Eliangela conta que já foi vítima de preconceito racial muitas vezes, inclusive na profissão.

"Fui convidada a sair da casa [de um idoso] porque usava turbante e associavam à macumba", afirmou.

Sua história de vida reflete diferentes tipos de discriminação, direta ou estrutural, que os negros sofrem no Brasil.

Filha de mãe analfabeta e pai que não terminou o ensino fundamental, ela conseguiu completar o ensino médio, mas engravidou aos 18 anos. Seu pai, na época, abandonou a mãe, que se tornou alcoólatra e passou a bater nela. Eliangela acabou saindo de casa com o filho pequeno, que criou sozinha.

Desde então, trabalhou como vendedora, auxiliar de dentista, balconista de açougue, babá e vendedora ambulante. Mas, como cuidadora de idosos, realizou-se.

Para mensurar a exclusão vivida por negros como Eliangela, a Folha lançou uma ferramenta inédita. Desenvolvido pelos economistas do Insper Michael França, Sergio Firpo e Alysson Portella, o Ifer (Ìndice de Equilíbrio Racial) mede a distância entre a desigualdade nas 27 unidades da federação e um cenário em que a presença dos negros em estratos de elite refletisse seu peso na população de 30 anos ou mais.

Minas Gerais, onde Eliangela vive, tem o 14º maior nível de exclusão do país, embora seja o estado menos desigual do Sudeste.

Em resposta a perguntas enviadas pela Folha sobre políticas de combate à desigualdade, o governo de Minas mandou uma nota curta, em que não mencionou ações específicas de combate ao preconceito.

Alguns estados citaram medidas nessa direção. O governo do Rio mencionou um estudo que fez ano passado, mostrando que 844 pessoas, das quais 766 negras, foram vítimas de discriminação racial no estado em 2019. Ou seja, 2,3 casos de racismo, como o sofrido por Eliangela, por dia.

Para Fernando José da Costa, secretário de Justiça e Cidadania de São Paulo, o combate à desigualdade racial requer duas frentes de políticas. Uma delas passa pela ampliação de ações afirmativas, e a outra, por medidas repressivas à discriminação direta.

Desde 2010, o governo paulista prevê punição administrativa em casos de discriminação. As penas podem ser advertência, multa e cassação de licença (se a ofensora for uma empresa).

São Paulo e Paraná também mencionaram linhas diretas criadas para denúncias de discriminação. A Paraíba criou, em 2020, um centro para o enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa, que conta com psicólogos, assistentes sociais e advogados. Maranhão e Bahia citaram iniciativas parecidas.


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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