Minhocão pode ir além de parque, demolição, e via expressa
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Três mil e quatrocentos metros de pista elevada e três décadas de debates esperam da gestão que assumir São Paulo em janeiro um fim: depois de a Câmara Municipal suspender, em setembro, a decisão anterior de transformá-lo em parque, o que fazer com o Minhocão? Um plebiscito foi proposto para 2022, e talvez nada mude. Pesquisa realizada pelo Datafolha em setembro mostra que 54% de 1.092 entrevistados querem o elevado como é hoje, via expressa em horário comercial e acesso a pedestres à noite e aos finais de semana. São 30% os que desejam que a construção seja transformado em parque, e 7%, que sua estrutura seja completamente demolida. Afora as três alternativas, que outras possibilidades poderiam ser imaginadas? "Projetos e desenhos não faltam, mas nenhuma solução imposta de cima para baixo pode funcionar", diz Vinicius Andrade, arquiteto e urbanista, sócio da Andrade Morettin e cocriador do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper. Recuperando a longa história de concursos e chamamentos, ele enfatiza a necessidade de pactos mais bem costurados entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil. Andrade se mostra cético, por exemplo, em relação à construção de um túnel, como a Perimetral do Rio e o chamado Big Dig, artéria central que atravessa Boston ("o custo é altíssimo, digo cem vezes mais em relação às alternativas", afirma). Já o enterramento da ferrovia da Barra Funda (eixo Lapa-Brás), vislumbrado desde 2013 dentro do Projeto de Intervenção Urbana (PIU) do Arco Tietê, parece fazer sentido na visão urbanista, pois abriria a possibilidade de desafogar o fluxo de 70 mil carros/dia na ligação Leste-Oeste. Na época, os custos para enterrar os trilhos foram estimados em R$ 3,5 bilhões. A construção de uma via expressa em paralelo à ferrovia estava também prevista em um projeto de requalificação urbana assinado pelo escritório DEF e pela consultoria Urban Systems. Apresentado à Prefeitura de São Paulo em 2012, durante a gestão Gilberto Kassab, o projeto imaginava a demolição do elevado apenas no trecho entre a praça Roosevelt e o largo Santa Cecília, com a abertura de um canteiro central. O restante do viaduto seria convertido em parque linear. "Quase dez anos depois, continuo achando a ideia muito pertinente para uma cidade mais humana e mais conectada", diz Thomaz Assunção, presidente da Urban Systems. Segundo ele, as novas formas de trabalho remoto instituídas com a pandemia podem alterar a maneira como os fluxos se organizam. "Tudo indica que as pessoas vão ficar mais tempo em casa, diminuir esse transporte pendular casa-escritório/centro-bairro em horário pré-determinados", complementa. "Não vai ter essa periodicidade marcada, característica da era industrial. Nesse sentido, talvez a via expressa que imaginamos no traçado da ferrovia pudesse ser substituída por um VLT." A parte de baixo do elevado, por sua vez, seria transformada num corredor de lojas e galerias. Em 2019, alunos de urbanismo da Escola da Cidade, da FAU-USP e do Mackenzie cursaram disciplinas exclusivamente dedicadas a pensar o Minhocão, graças a uma iniciativa da prefeitura de aproximar-se das universidades. Responsáveis pela pós-graduação em mobilidade e cidade contemporânea na Escola da Cidade, Marta Lagreca e Pablo Hereñú , junto com outros três professores, criaram um laboratório de projetos que dividiu o Minhocão em cinco segmentos. "A ideia era fazer uma análise mais detalhada, em escala humana, quase quadra a quadra", contou Lagreca. "Eu já fui entusiasta da demolição. Hoje acho que não dá para a gente ter uma visão retrospectiva e romântica de achar que vai recriar o antigo bulevar. Isso é nostalgia." No projeto das alunas Gabriela Sá e Juliana Simantob, o parque é instalado sobre uma versão mais estreita do Minhocão --os pilares são mantidos, mas as vigas são retiradas-- numa adaptação prevista para funcionar por dez anos, como laboratório participativo, antes da remoção total. O estreitamento, elas defendem, permitiria maior iluminação ao nível inferior. "Mais de um projeto contemplou essa possibilidade", enfatiza Marta. Cicatriz urbana, o Minhocão surgiu na paisagem paulistana em 1971. Criado pelo então prefeito biônico Paulo Maluf em meio à ditadura militar, o viaduto exaltava a crença na cidade para o automóvel e foi construído sobre o que era uma das principais avenidas de São Paulo, a São João. O resultado quase imediato foi a degradação do entorno e uma queda vertiginosa dos aluguéis. Depois de décadas de discussão, a desativação do elevado foi definida no Plano Diretor assinado em 2016, durante a gestão Fernando Haddad. Em fevereiro de 2018, a lei que cria o Parque Municipal do Minhocão foi promulgada pelo então prefeito João Doria (PSDB). Atendendo a um pedido do Ministério Público, uma liminar de junho de 2019 suspendeu o andamento do processo, alegando que a criação do parque se dava de forma aleatória e sem lastro técnico. A liminar foi derrubada em outubro e o processo voltou a andar. Uma licitação chegou a escolher uma empresa de engenharia para projetar e construir oito acessos de pedestres. O plano foi interrompido pela pandemia e pela aprovação da convocação de plebiscito. Críticos ao parque veem na proposta uma imitação artificial da High Line nova-iorquina "na esteira hipster", frisando a diferença entre as antigas ferrovias do século 19 e um viaduto dos anos 1970. Apontam também a dificuldade de manter os jardins verticais que foram instalados nos prédios do entorno e preocupações com o trânsito. Entusiastas do parque, capitaneados pela Associação Parque Minhocão, citam lazer, a dignidade e a transformação do entorno que os novos usos poderiam proporcionar. "Não existe consenso. Os catedráticos do urbanismo divergem entre si", ressalta Vinicius Andrade. Pessoalmente, ele defende a manutenção, com um olhar especialmente atento à parte inferior: "A inteligência desse lugar [Minhocão] está na versatilidade. Existe ali um corredor de serviços: o serralheiro, a bicicletaria, as lojas populares de móveis de escritório. Daria para cuidar dessa parte com pintura, forro acústico, manutenção e manter esse perfil popular ao invés de transformar tudo em lojas e cafés que a população que hoje circula ali não vai poder frequentar. "
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