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Famílias velam corpos de vítimas de ataque em creche em Saudades (SC)

Por Folha de São Paulo

05/05/2021 16h37 — em
Variedades



SAUDADES, SC (FOLHAPRESS) - É difícil começar um texto sobre o assassinato brutal de três crianças e duas professoras em Saudades sem falar da saudade que o riso fácil da Keli Adriane Aniecevski, 30, deixará e da falta de ver a Anna Bela, 1, correndo brincando de pique-pega pela casa ou da alegria de celebrar a primeira e única filha Sarah Luiza, 1.

O velório coletivo na manhã desta quarta-feira (5) no ginásio esportivo da pequena cidade de 9 mil habitantes tentou não ignorar os protocolos para a Covid-19, embora o abraço e a aglomeração de centenas fossem inevitáveis em meio à dor e ao choque da violência onde até furtos são raros e os rostos são todos conhecidos, mesmo atrás das máscaras.

O ataque à Escola Municipal Infantil Pró-Infância Aquarela nesta quarta (4) vitimou também a agente educativa, Mirla da Costa Renner e o pequeno Murilo Massing, 1. Deixou ferido ainda um menino de 1 ano e 8 meses —ele passou por cirurgia e está internado em estado grave, mas estável, na UTI.

A creche, que recebe crianças de 0 a 3 anos, tinha apenas metade dos alunos por causa pandemia, quando um homem de 18 anos entrou com duas facas e desferiu pelo menos cinco golpes de facão em cada uma das vítimas.

Ele tentou entrar em outras salas, mas professoras conseguiram se trancar e proteger as crianças. Após o ataque, o jovem golpeou o próprio corpo. Internado, passou por cirurgia e está sob custódia, preso em flagrante por quíntuplo homicídio.

A professora Keli Adriane dava aula na creche havia 10 anos. Solteira e sem filhos, seu sonho era lecionar para os pequenos. Também era uma líder do clube de jovens Leo Omega, jogava futebol de salão e aos finais de semana fazia pizza no restaurante de uma amiga, conta o tio Rogério Kipper, 47.

Ao andar pela cidadezinha, é difícil ver portões fechados. Crimes? Só briga de bar, de bebedeira, suicídios e, olhando muitos anos, um assassinato ou outro, contam os moradores, forçando a memória.

“Aqui a gente larga o carro aberto com a chave dentro e sai”, conta o vereador Alfeu Schuh, 50, que é tio-avô de Anna Bela.

Os pais da menina são um pintor e uma costureira, que vivem se forma simples.

Já ela, conta Alfeu, era “um furacão. Não parava, não tinha medo de nada”. Estava aprendendo a falar e já balbuciava “os cocó do tio Feu”, apontando para as galinhas e patos do quintal, que junto com os quero-quero são o único barulho da casa, afastada do centro da cidade. Foi lá que ela passou as férias em janeiro e se esbaldou na piscina.

O vereador foi um dos primeiros a ser chamados quando o ataque aconteceu.

“Eu cheguei, vi as mães correndo ‘cadê meu filho? Cadê meu filho?’. O desespero foi quando veio a Luana [mãe da Anna Bela] e disseram que ela... [estava entre as vítimas]”, conta.

A tragédia poderia ter sido maior: na sala dela normalmente havia 12 alunos, mas naquele dia só estavam presentes 4, por conta da pandemia.

Alfeu também é amigo da família do rapaz que executou sua sobrinha-neta.

“Nunca escutei nada dele, de briga, nada. Se ele chegasse aqui, de roupa comum e bicicleta, eu ia chamar pra entrar. Qualquer um chamaria, poderia matar qualquer família”, diz.

“Eu só quero justiça. Minha menina não merecia isso. Só trabalhava e estudava”, conta a mãe de Mirla, que sonhava ser engenheira química. A jovem estava no terceiro ano do curso.

“As pessoas diziam ‘tu é louca, é muito difícil engenharia’, mas ela queria muito’”, diz a mãe. “Ela estava sempre sorridente, todo mundo elogiava a minha criação. Eu falava ‘você é meu tesouro’.”

Os mais novos da família se espelhavam e diziam “quero ser igual a Mirla: bonita e inteligente”.

A trave do gol no ginásio em que acontece o velório agora é um mural onde se lê “o céu ganhou anjos lindos. Que a família Saudades pra sempre lembrará. Por mais paz, amor e oração”. Os amigos de Mirla, da faculdade de engenharia química, estenderam cartazes onde dizem que irão sentir saudades até das suas broncas.

Na missa, o bispo de Chapecó Dom Odelir verbalizou o que ecoa no ginásio: “A gente imagina que [esse tipo de ataque] é possível nos Estados Unidos, em São Paulo, mas aconteceu na nossa cidade”.

“A gente se pergunta ‘o que dizer?’ Mas estamos aqui juntos tentando de algum modo ajudar essas famílias pra dizer ‘vocês não estão sozinhos’”, disse ele, que também lembrou das vítimas da Covid-19.

“Assim como as famílias que aqui sofrem, no Brasil são 410 mil famílias que perderam seus entes queridos de forma antecipada.”

DOR E EMOÇÃO

Passaram pela missa e pelo velório cerca de 1.000 pessoas, segundo a Polícia Militar. A música Aquarela, de Toquinho, foi cantada para homenagear os educadores. Num dos versos: “o futuro é uma astronave que tentamos pilotar. Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar”.

Vários familiares passaram mal e foram atendidos por médicos no local.

Ônibus escolares pintados chamam as vítimas de “anjos e “heroínas”, com frases de “vocês não estão sozinhos” e “para quem tem fé a vida nunca tem fim”, em apoio aos enlutados.

O barulho da procissão de cerca de 300 metros até o Cemitério Municipal de Saudades era o silêncio. Vizinhos espreitavam a porta e faziam o sinal da cruz. Fez-se um coro do cântico “segura na mão de Deus” durante o enterro dos corpos realizado por volta do meio-dia.


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