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Em bairro mais populoso de Sobral, moradores lidam com vírus e violência

Por Folha de São Paulo

31/10/2020 9h03 — em
Variedades



SOBRAL, CE (FOLHAPRESS) - A Maria que ficou chora pela Maria que partiu. A que ficou não vê mais graça na vida. A que partiu dizia que a graça está nas coisas de Deus.

Maria Assunção, 55, lamenta há quatro meses a ausência da mãe, Maria da Conceição, 85, uma das mais de 159 mil vidas perdidas para a Covid-19 no Brasil.

Pertencente ao grupo de risco pela idade e por ser hipertensa, Maria da Conceição enfrentou outro problema: a falta de leitos no hospital. Ficou quatro dias em uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] até conseguir uma vaga. Morreu cinco dias depois.

"A minha bichinha não andava, não falava, não comia. Foi tudo tão forte", conta, chorando, a filha Maria Assunção, que teve sintomas leves da doença. A família acha que a idosa foi contaminada pelo neto que não queria usar máscara.

Mãe e filha moravam na rua dr. Thomaz de Aragão, no bairro Terrenos Novos, o mais populoso de Sobral, cidade a 231 km de Fortaleza (CE).

Se estivesse vivo, o médico Thomaz de Aragão (1910-1998), que ajudou a combater nos anos 50 a epidemia de leishmaniose visceral, ficaria triste com a situação da rua que leva seu nome. Ali nenhum morador passou incólume ao coronavírus. Procurados, não quiseram falar com a reportagem por causa do luto.

O bairro de 30 mil habitantes era até a quarta (28), o 2º mais atingido pela Covid-19, com 913 casos e 27 óbitos, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Dos 210 mil habitantes da cidade, 7,2% já haviam sido contaminados, a segunda maior taxa de infectados do Brasil, segundo dados de setembro da pesquisa Epicovid.

Até a última quarta-feira (28), o município cearense registrava 314 mortes em suas unidades de saúde.

Sobral, que tem IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) alto, de 0,714, é um polo industrial entre 18 municípios da região norte do Ceará. E, até 2019, a cidade administrada por Ivo Gomes (PDT), irmão de Ciro e Cid Gomes, ocupou a 1ª posição do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) no país.

Os moradores de Terrenos Novos dizem que falta infraestrutura e a presença das forças de segurança no combate à guerra entre facções criminosas, cujas balas perdidas têm matado inocentes.

Márcia Souza, 33, integra a equipe de agentes de saúde que lidam diariamente com a violência. "Tem hora que está calmo e, do nada, começam a atirar", diz. E cita o caso do adolescente de 17 anos que morreu atingido por uma bala perdida quando brincava na rua no início da pandemia.

A reportagem percorreu de carro o bairro, acompanhada de Márcia. A recomendação foi manter os vidros abertos e andar em baixa velocidade. No trajeto, muitos pontos de vendas de drogas eram tomados por mulheres que fingiam fazer a unha na calçada. A prefeitura não disse o que tem feito para coibir as facções.

A UBS (Unidade Básica de Saúde) de Terrenos Novos 2, se estruturou para proteger os funcionários dos constantes tiroteios. Cada consultório possui uma saída de emergência que dá acesso a um corredor que leva os profissionais para fora da unidade.

Além da violência, a unidade entrou em colapso quando 94% dos seus 49 servidores, incluindo Márcia, foram contaminados e afastados da função no ápice da pandemia. "Tivemos de limitar as visitas às casas e reduzir os atendimentos", conta a gerente da unidade Bruna Oliveira.

A oito quilômetros dali, também na periferia, o projeto de uma enfermeira busca proteger a parcela da população mais vulnerável ao coronavírus: as gestantes e puérperas.

Na Cohab 2, bairro de 9.000 habitantes, Vitória Amaral, 25, usou as videochamadas para substituir as visitas presenciais para monitorar qualquer alteração de saúde nos recém-nascidos. Uma das monitoradas foi a servidora pública Jordali Matos, 28, que viu seu bebê de 40 dias apresentar sintomas de Covid-19. "A Vitória recomendou que eu o levasse para fazer exames que confirmaram que ele estava contaminado", conta ela, que também foi infectada e se recuperou. O bebê ficou internado por sete dias.

O projeto de monitoramento de gestantes e puérperas de Vitória concorre a um prêmio da Opas (braço da Organização Mundial da Saúde para as Américas) para iniciativas inovadoras contra o coronavírus.

Em Sobral, 3 gestantes e puérperas já morreram de Covid-19 e 139 foram infectadas.

A secretária de Saúde da cidade, Regina Carvalho, reconhece os desafios para conter a pandemia. "É uma cidade movimentada e atravessada por problemas sociais. Era natural ter tantos casos."

Agora, Carvalho quer criar um programa de saúde mental para famílias como a dela, atingidas pela Covid-19. "Sei o que a minha gente viveu porque também senti na pele a falta de leitos", diz ela, que perdeu um irmão.

A ideia, segundo a secretária, é fazer com que os atingidos voltem à vida.

O desafio de Maria Assunção após a morte da mãe, Maria da Conceição, é reativar sua venda de balas, lápis e potes de plástico na rua onde mora em Terrenos Novos.

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