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Depois de um trauma pessoal, jovens decidem se tornar médicos

Por Folha de São Paulo

17/10/2021 9h03 — em
Variedades



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O estudante de medicina passou por duas cirurgias no intestino com 14 anos, o cirurgião-geral caiu do cavalo e teve parte do rosto paralisado aos 13 e o infectologista lidou com crises de epilepsia ainda com 11.

Médicos e futuros médicos tiveram o primeiro contato com a atividade antes da pergunta "o que você quer ser quando crescer" ter de ser respondida com seriedade --e essas experiências acabaram tendo um peso na hora da escolha profissional.

Apaixonado por física, Willian Luiz dos Santos, 20, pensava em ser engenheiro quando criança. Até que, aos 14 anos, teve apendicite e passou por uma cirurgia em Londrina, sua cidade natal. Depois de poucos dias de alta, teve que voltar ao hospital em decorrência a complicações do procedimento. Dias depois, o jovem teve uma piora no quadro e precisou de uma segunda cirurgia.

"Todo mundo achou que eu ia morrer", lembra Santos. "Entravam no quarto com uma expressão aterrorizada, minha mãe sorria para mim, mas era um sorriso triste." Foi quando ele conheceu o médico Emanuel Gois Junior, que logo perguntou como ele estava se sentindo emocionalmente.

"Eu desabei, disse que não aguentava mais, foram dois meses de puro sofrimento", diz o jovem que conta que o médico conversou como se ele não estivesse acamado. "O olhar de pena não era como eu queria naquele momento. Ele começou a fazer perguntas simples, tinha uma voz muito calma e aquilo me gerava tranquilidade."

A calma e esperança do médico fizeram com que Santos começasse a pensar em seguir os passos do doutor. Quando chegou a hora de decidir qual profissão trilhar, ele anunciou que queria medicina. A mãe sorriu, o pai olhou desconfiado e disse que o garoto, que estudava em escola pública, teria que se esforçar muito.

"Quero me tornar um símbolo de esperança. A minha experiência mostrou que as pessoas não devem desistir da vida", diz ele, que em agosto deu mais um passo para atingir o seu sonho e passou na Universidade Federal do Paraná -as aulas começam em janeiro.

Galeria Willian Luiz dos Santos decidiu ser médico após passar mais de um mês hospitalizado Aos 14 anos, o jovem teve um grave problema no "Ele é filho de uma empregada, eu não tive estudos", diz sua mãe, Adriana de Souza, 47. Por incentivo do filho, ela agora estuda para se tornar técnica de enfermagem.

Atualmente infectologista do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, João Prats, 32, entrou na universidade com a ideia de se especializar em neurologia. A profissão apareceu na sua vida quando ele começou a ter crises de epilepsia em casa e na escola com apenas 11 anos.

Apesar da situação delicada, ele lembra com carinho da época, quando foi tratado pelo neuropediatra José Salomão Schwartzman. "Ele brincava, trabalhava de forma leve e aquilo foi inspirador", lembra o médico que sempre gostou de biologia e de ciências.

Quando comentou com Schwartzman que queria ser médico, ouviu o seguinte: "estuda direitinho que você ainda me pega vivo para fazer estágio comigo". A faculdade, porém, o fez mudar de área de especialização. "Queria fazer neurologia, mas tive minhas primeiras aulas de fisiologia e odiei. Achei a matéria chata", ri ele.

Depois de alguns anos, Prats optou por infectologia. "Uma das coisas que eu mais gosto é lidar com pacientes imunossuprimidos". Além disso, o médico também cita, claro, as pandemias. "São sempre uma novidade para a gente trabalhar, nunca imaginaria que o mundo inteiro, hoje, estaria usando máscara", afirma.

Assim como Prats, o cirurgião Antônio Luiz Macedo, 70, do Hospital Vila Nova Star, também pensava em fazer medicina desde jovem, depois de observar pais de amigos.

Além disso, no antigo primário, Macedo relembra que era muito hábil com as mãos. "Tinha a mão delicada e aquela letra bonitinha e as professoras diziam: 'com essa mão, você vai se tornar cirurgião' e realmente deu certo".

Porém, o susto veio aos 13 anos quando ele montou em um cavalo de rodeio. "Eu montei, ele pulou até que me jogou na porteira. Eu bati o rosto e rompi um nervo", diz o médico, que devido ao acidente, ficou com paralisia no lado direito do rosto.

O medo, após a cirurgia, era que sua visão fosse prejudicada, o que poderia impedir o doutor de seguir a carreira de cirurgião. "Fiquei muito assustado com o olho que pisca menos e correr o risco de ter a visão prejudicada, mas nunca aconteceu nada", diz ele.

Um dia normal de Macedo começa às 6h, e as cirurgias têm início uma uma hora e meia depois. Depois, ele atende em seu consultório até o início da noite, e ainda faz musculação. "Sou muito alto, se não fizer musculação, como vou aguentar uma cirurgia de 12 horas de duração?"

Entre os pacientes que já passaram pelas mãos do cirurgião estão nomes como o apresentador Silvio Santos e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) -foi ele o responsável por operar o então candidato à presidência, em setembro de 2018, quando ele levou uma facada em meio a um comício em Juiz de Fora (MG).

Formado há 47 anos, o médico avalia que a profissão exige estudo e atualização, além de aguentar longas horas de cirurgia sem tremer a mão.

Filha de dois profissionais da saúde, Daniela Bortman, 36, nunca perdeu o foco e sempre quis fazer medicina. "Meus irmãos passavam mal só de passar em frente a um hospital, mas eu amava", diz ela, que estudou na Universidade de Taubaté. No início, duas áreas atraíam ela: oncologia, por causa de uma tia próxima a ela que teve um linforma, e neurociência.

Porém, tudo mudou no terceiro ano da faculdade. Diferente dos colegas de profissão, ela teve que lidar com um trauma em meio ao curso -em 2006, ela sofreu um acidente de carro e ficou tetraplégica.

No ano seguinte, ela quis voltar para a universidade, mas muitos professores foram contra e ela chegou a ouvir frases como "medicina não é mais para você" ou "vai procurar outra coisa para você fazer".

"A hora que a pessoa diz 'não dá' é porque ele não conhece. Eu tinha preconceito por mim mesma, as pessoas têm preconceito. A gente vive em uma sociedade que atribui a pessoa com deficiência como coitadinho, incompetente e inutil", diz ela que conseguiu se formar.

Apesar da dificuldade, ela recebeu ajuda de algumas pessoas. Uma professora conseguiu que Bortman entrasse no centro cirúrgico de cadeira de rodas, e costureiras fizeram um avental cirúrgico que cobria sua cadeira de rodas.

Depois de formada, ela foi convidada a trabalhar na área da medicina do trabalho, na qual se especializou. "Hoje, a maior parte do meu trabalho é a promoção de saúde e o bem-estar para os trabalhadores, têm muito a ver com saúde pública que é uma medicina preventiva", explica.

"Quanto mais eu aprendia sobre medicina do trabalho, mais entendia que saúde e inclusão estão totalmente ligadas", afirma ela, que reflete sobre a sua situação. "A minha condição física não melhorou muito dos últimos 15 anos para cá, mas hoje se sou uma pessoa feliz e realizada é por causa da minha saúde mental e o contexto em que estou inserida porque minha condição física é a mesma."

Hoje, além de trabalhar na área de saúde ocupacional da Bayer, ela também abriu uma consultoria de inclusão e diversidade no mercado de trabalho. "A essa necessidade de inclusão na medicina existe justamente por causa do perfil, muitas vezes, distante dos médicos. Por isso, acredito muito na necessidade de inclusão associada ao fazer uma medicina cada vez melhor", reflete.


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