Catedral da Sé ganha mais sonoridade com órgão restaurado
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - E lá se vão 22 anos de silêncio... Foi numa manhã ensolarada de verão, em março de 2002, quando os tubos soltaram "Tocata e Fuga em Ré Menor, BWV 565", uma das obras mais conhecidas do compositor alemão Johann Sebastian Bach. A execução ocorreu antes da missa, durante ensaio. Seriam as últimas notas emitidas pelo órgão naquele que é considerado o símbolo máximo do catolicismo na maior cidade da América do Sul, a Catedral da Sé.
A retomada vem sendo anunciada há algum tempo, mas, se tudo der certo, o instrumento deve começar até dezembro a ser restaurado, procedimento que irá ampliar a sua sonoridade.
A reinauguração do órgão por si só já será motivo de celebração. Trata-se de um instrumento histórico, fabricado sob encomenda na Itália, em 1953. Construído pela empresa Balbiani Vegezzi-Bosi, em Milão e Turim, veio de navio da Europa até o Brasil, onde desembarcou no porto de Santos, antes de subir a serra até São Paulo.
O mesmo organista que o tocou pela última vez será o responsável pela volta da sonoridade do órgão. A princípio, Delphim Rezende Porto pensa numa peça italiana, visto que ele começou seus estudos no Liceu Sagrado Coração de Jesus, no centro da capital.
A instituição foi inaugurada pelos primeiros padres salesianos, que desembarcaram em São Paulo, em 1885. O lugar abriga ainda a igreja do Santuário Sagrado -foi lá que o então menino teve o seu primeiro contato com a música em um órgão centenário.
"Os padres vieram de Turim", lembra. "Tanto o mestrado quanto o doutorado versam sobre assuntos do Renascimento italiano", diz Porto, hoje com 36 anos. Ele fez duas graduações, concluiu mestrado e doutorado em música na USP. Foi convidado para uma temporada de estudos e docência na Universidade Columbia (EUA). É diretor de música da catedral.
Erguida próxima ao chamado Marco Zero, a Catedral Metropolitana de São Paulo é a quinta maior igreja neogótica do mundo. As obras demoraram de 1913 a 1954. Em seus 70 anos, completados no último 25 de janeiro, essa joia arquitetônica no coração da metrópole tornou-se espaço de diferentes atos inter-religiosos, como os comícios das Diretas Já.
O órgão está localizado em uma área que pode passar despercebida aos olhos dos visitantes desatentos: fica por detrás das enormes colunas do presbitério do templo. Todo o processo de restauro será feito de forma manual.
Durante as etapas de recuperação, a igreja irá organizar visitas guiadas ao canteiro de obras, além de concertos, para que o público possa acompanhar tanto o restauro quanto os bastidores da produção musical da catedral, explica Camilo Cassoli, 45, diretor do projeto cultural.
O custo estimado do trabalho é de R$ 6,5 milhões, e os recursos ainda estão sendo captados via Lei Rouanet.
"Percebemos que as pessoas, incluindo fiéis e representantes das empresas que estão doando recursos para a obra, não têm ideia do tamanho e da complexidade de um instrumento como esse", conta o padre Luiz Eduardo Baronto, cura da Catedral Metropolitana. "A partir do momento em que passam a conhecê-lo, percebo que a sensibilidade em relação à música criada na igreja aumenta."
Com a reforma, o instrumento vai ganhar 1.340 novos tubos, totalizando 12 mil, calcula o organeiro Daniel Gazzaniga Rigatto, 48. De acordo com ele, as adições de tubos no órgão da Sé farão com que ele se torne o maior instrumento musical do gênero na América Latina, superando os 11.130 tubos do órgão da Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, em Niterói (RJ).
Rigatto é um dos maiores especialistas em construção e recuperação de órgãos do Brasil. Com especialização na Itália, vem de uma família com longa tradição na área. Aos nove anos, começou a trabalhar com esse tipo de instrumento musical ao lado do pai e do irmão, Márcio. Os dois também cuidaram do órgão da Crystal Cathedral, em Los Angeles (EUA), um dos maiores do mundo, com cerca de 17 mil tubos.
Conta que o restauro vai presentear o órgão da Sé com uma nova consola e cinco teclados. "Com a modernização do sistema de transmissão e a ampliação, o órgão se transformará em um excelente instrumento sinfônico", ele afirma. "A restauração de forma artesanal e artística irá melhorar também a harmonização dos tubos, definindo seus variados timbres e a intensidade do som", continua Rigatto.
Porto, o organista, diretor de música da Sé, anda inspiradíssimo. Ele dá algumas pistas do que deve tocar na tão aguardada reinauguração. "Canzona La Spiritata'', do compositor veneziano Giovanni Gabrieli, por exemplo, está garantida na lista.
Ele teve a oportunidade de tocar o órgão mais antigo de Bolonha (Itália), o da Basílica de São Petrônio, datado de 1471. "Seria em memória do professor Liuwe Tamminga, que era o organista lá e com quem aprendi essa música", recorda-se Porto. "Tristemente, ele veio a falecer, em abril de 2021."
Pensando bem, o ele diz acreditar que o órgão da catedral mereça uma composição especialmente criada para um instrumento tão consagrado. "Comecei a rascunhar uma tocata para o órgão, uma criação que reflita a tradição e também a nossa brasilidade", ele dá mais uma dica. Esperamos que, desta vez, a canção não fique apenas nos ensaios.
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