Brasil precisa debater se quer 'legislação de guerra em tempos de paz', diz Gakiya
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O promotor Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo, afirma que é necessário um debate público mais longo e qualificado sobre o parecer do deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP) para o projeto de lei antifacção, descrito como "uma legislação de guerra em tempos de paz". A proposta, que foi apresentada na última sexta-feira (7) e pode ir à votação nesta terça (11), equipara as penas previstas para facções criminosas e organizações terroristas.
Considerado um dos maiores especialistas na facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), Gakiya demonstrou preocupação com trechos do texto como a ausência dos Ministérios Públicos como órgão competente para investigar o crime organizado, a limitação da atuação da PF (Polícia Federal) no tema, e a previsão de que o governo federal designe a PF para atuar em conjunto com órgãos locais apenas "mediante provocação do governador do Estado".
Após as críticas do governo, Derrite apresentou na noite desta segunda (10) um substitutivo que permite à PF investigar facções, mediante parceria ou comunicação prévia a autoridades estaduais o que é visto como problemático por especialistas.
Gakiya, no entanto, elogiou trechos do projeto que permitem apreensão e perda de bens antes da condenação penal, o aumento do período de cumprimento de pena em regime fechado e a proibição de fiança, liberdade provisória, livramento condicional ou indulto para quem integra facções criminosas. O promotor disse que um debate público mais amplo é necessário para chegar a um formato ideal para o projeto.
"Se a proposta do governo [federal] acabava privilegiando a Polícia Federal em detrimento das polícias estaduais e dos Ministérios Públicos, a do Derrite praticamente deixa essas investigações de todas as facções a cargo das Polícias Civis estaduais, e a atuação da Polícia Federal seria subsidiária", disse Gakiya. "Haveria a exclusão da Polícia Federal na investigação de crimes que ela já investiga."
Ele compara proposta a uma legislação de guerra, nos termos da própria justificativa que Derrite apresentou para sua proposta.
O texto entregue por Derrite define que organizações terroristas aquelas motivadas por xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, segundo a lei continuarão sendo investigadas pela PF e processadas na Justiça Federal. Já as facções criminosas seriam investigadas pelas polícias civis, com tramitação nos tribunais estaduais. Hoje há investigações contra facções nas duas esferas.
Na opinião do promotor, a legislação deveria estimular a cooperação entre agências estaduais e federais, sem separar as competências. É por isso que ele segue defendendo a criação de uma agência federal que coordene ações de vários órgãos que atuam nessa área. A ideia da agência antimáfia, como foi chamada, acabou descartada antes do texto ser enviado ao Congresso.
"O que a gente tem que promover é a atuação integrada e conjunta. Para mim, isso foi um ponto extremamente preocupante", disse o promotor.
Ele relata que a colaboração com órgãos federais que resultou em operações como Fim da Linha, Sallus et Dignitas, Tacitus e Carbono Oculto, que apontaram para grandes esquemas de lavagem de dinheiro, infiltração na economia formal e corrupção policial praticados pelo PCC, dependem do esforço pessoal de promotores, procuradores, policiais e outros agentes públicos.
Ele prevê, ainda, que o texto deve sofrer questionamentos na Justiça se for aprovado no formato atual, já que muda o entendimento atual sobre as esferas de competência das polícias e deixa de incluir os Ministérios Públicos no rol de órgãos de investigação.
Gakiya, que trabalha há 20 anos no combate a crime organizado, fez parte do grupo de consultores criado pelo Ministério da Justiça para debater propostas para melhorar o combate contra o crime organizado. O esforço resultou no PL Antifacção apresentado pelo governo federal na semana retrasada.
O promotor é jurado de morte pelo PCC há mais de uma década, situação que trouxe impactos à sua vida pessoal. Ele é acompanhado 24 horas por dia por escolta armada. No final de outubro, a Polícia Civil e o MPSP fizeram uma operação para impedir um plano de integrantes da facção para assassiná-lo. Os criminosos também monitoravam um coordenador regional de presídios.
O projeto criava a "organização criminosa qualificada", com penas maiores para as facções com atuação transnacional, que corrompem funcionários públicos, dominam territórios e se inserem na economia formal. O projeto foi anexado a outro texto, que propõe a equiparação das facções com grupos terroristas, e passou a ser relatado por Derrite.
Com o novo texto, a ideia de facção "qualificada" perde força. Qualquer facção que use violência para "intimidar, coagir ou constranger a população ou agentes públicos" com a intenção de dominar territórios, entre outros critérios, poderiam ser equiparadas a organizações terroristas. Segundo Gakiya, o texto abre margem para que facções comuns e menores, que atuam regionalmente, possam ser enquadradas como terroristas.
"Precisamos saber se a população, se o Congresso, se os especialistas entendem se abstraído o problema de segurança pública no Brasil, que é gravíssimo é caso de banalizarmos um conceito de organização criminosa terrorista", afirmou o promotor.
"O que o projeto fez foi igualar todas essas facções", disse o promotor, referindo-se às 88 organizações mapeadas por estudo da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais). "Todas elas têm domínio territorial. Pode ser de um bairro, mas têm domínio territorial."
RECUO
Nesta segunda-feira, Derrite que está licenciado do cargo de secretário de Segurança Pública de São Paulo excepcionalmente para relatar o projeto apresentou um novo substitutivo que permite à Polícia Federal investigar facção, desde que aconteça em parceria ou comunicação prévia às autoridades estaduais.
O texto anterior excluía a Polícia Federal e o Ministério Público de investigações sobre crimes praticados por facções criminosas, milícias e grupos paramilitares ou poderia haver uma cooperação com aval do governador.
A mudança ocorre depois que a própria PF criticou as alterações feitas por Derrite, relator do PL Antifacção no Congresso, afirmando que as mudanças representam um risco de enfraquecimento nas ações que miram esses grupos.
Apesar da mudança, a avaliação de especialistas e membros do governo é que a nova versão permanece com problemas.
Segundo o texto, a Polícia Federal poderá participar das investigações, assim como qualquer delito ligado a essas organizações, em caráter integrativo com a polícia estadual.
A atuação da PF deverá ocorrer mediante solicitação do delegado de polícia estadual ou do Ministério Público estadual ou por iniciativa própria. No entanto, neste segundo caso, a corporação teria que comunicar a investigação às autoridades estaduais.
Derrite foi designado relator pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), na última sexta-feira (7). Por se tratar de um projeto de autoria do governo federal, a escolha foi vista como um revés para o governo Lula (PT).
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