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Ucranianos que vivem no front temem ser esquecidos em dois anos de guerra

Por Folha de São Paulo

24/02/2024 16h00 — em
Mundo



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um dia depois de as tropas russas invadirem a Ucrânia, Ievheniia Vasilieva, 28, foi embora de sua cidade. No trem saindo de Avdiivka, no leste ucraniano, ela chorava sem parar. Como ela era ativista e trabalhava em uma ONG, sabia que tinha de fugir rápido porque estaria entre os primeiros a serem presos quando os russos chegassem. "Eu não sabia onde ia ficar, nem por quanto tempo. Nas conversas com amigos e com a minha família, a gente tentava se tranquilizar, dizendo que não ia ser por muito tempo", conta à Folha.

Na semana passada, após uma das mais longas e sangrentas batalhas da guerra que completa dois anos neste sábado (24), Avdiivka foi tomada pelo Exército da Rússia. A população original, de 32 mil pessoas, ficou reduzida a 900 civis no início deste mês. Em pouco mais de quatro semanas, as forças de Moscou lançaram quase 500 toneladas de explosivos em uma área de 2,5 km². O presidente da Rússia, Vladimir Putin, comemorou sua primeira grande vitória desde a conquista de Bakhmut, em maio de 2023.

Ievheniia soube por um canal no Telegram, uma das principais fontes de informação dos ucranianos, que os militares de seu país tinham fugido de Avdiivka e que sua cidade havia caído nas mãos dos russos. A perspectiva de voltar para casa ficou ainda mais remota. "Vai ser impossível regressar por muito tempo. A cidade está sob ocupação e, quando for liberada, vai ter que passar por desminagem. Não dá para viver nem trabalhar lá."

Ievheniia faz parte dos 3,7 milhões de ucranianos deslocados internamente por causa da guerra, que se somam a cerca de 6 milhões de refugiados em outros países, segundo estimativa do Banco Mundial e das Nações Unidas.

Como muitos dos civis ucranianos, a ativista teme que o mundo esteja se esquecendo deles. As forças de Kiev não conseguiram virar o jogo na contraofensiva do ano passado. É cada vez mais custoso, politicamente, os países do Ocidente continuarem a financiar a Ucrânia. Para piorar, a atenção da mídia e de grande parte da comunidade internacional se virou para outro conflito sangrento -a guerra Israel-Hamas, que já causou quase 30 mil mortos na Faixa de Gaza, segundo autoridades locais. O conflito foi desencadeado pelos ataques terroristas da facção, que mataram 1.200 israelenses em outubro passado.

"Quando vamos para as regiões próximas ao front, muitas pessoas dizem para a gente: 'Por favor, não se esqueçam de nós", afirma à Folha Achille Deprés, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em Kiev. Deprés está na Ucrânia desde o início da guerra. "Eles têm medo de que a atenção para a situação deles esteja desaparecendo gradualmente. Isso cria ainda mais vulnerabilidade e incerteza para a população da Ucrânia."

Aproximadamente 11 mil civis ucranianos morreram durante a guerra, de acordo com Kiev, em uma contagem subestimada. Além disso, segundo o CICV, há 23 mil desaparecidos. "Por trás desses 23 mil há mães procurando desesperadamente por seus filhos, crianças passando aniversários sem seus pais, afirma Deprés. "É um sofrimento lancinante."

Avdiivka tinha sobrevivido a uma década de conflitos. Tomada brevemente em 2014 pelos separatistas apoiados por Moscou, foi recuperada pelas forças ucranianas. Desta vez, não resistiu à investida russa. A população remanescente buscou se proteger dos bombardeios em porões e corredores de edifícios e sobreviveu graças aos poucos alimentos e remédios que chegavam à cidade por meio de agentes humanitários.

Imagens divulgadas pelos russos mostram que não sobrou quase nenhuma casa ou prédio de pé na cidade. Um míssil explodiu perto da casa onde Ievheniia passou a infância, danificando a fundação, o telhado e quebrando as janelas. O apartamento onde ela morava não desabou como muitos outros, mas não está habitável, pelo que se vê em fotos.

"Minhas coisas ficaram no apartamento, todas as minhas lembranças de infância ficaram com meus pais. Eu sempre sinto falta dessa sensação de lar, de estar em casa", diz. "Tenho medo de nem sequer conseguir me lembrar das ruas, porque tudo está destruído. Há muitos cadáveres em Avdiivka e nos arredores, civis que morreram nos bombardeios e estão sob os escombros. Avdiivka tornou-se um cemitério para os russos. Espero que o maior número possível dos ocupantes morra."

A família de Ievheniia foi embora da cidade ainda em 2022, mas alguns amigos ficaram para trás. Vizinhos dela estavam escondidos em um abrigo atingido por um míssil dias antes da ocupação russa. "As autoridades disseram que muito provavelmente eles morreram."

Ievheniia vive em Kiev, onde trabalha em uma ONG que documenta crimes de guerra. Ela não perdeu a esperança. Junto com outros membros da "Poder das Ideias", organização que havia fundado em Avdiivka com alguns amigos, está discutindo a reconstrução de cidades na região de Donetsk. "Não sei quando vou poder voltar, não estou contando com isso agora. Mas estou fazendo tudo o que posso pelo país para um dia conseguir voltar."


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