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Suprema Corte suspende direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos após 49 anos

Por Folha de São Paulo

24/06/2022 20h36 — em
Mundo



NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) - O aborto nos Estados Unidos não é mais um direito constitucional, decidiu a Suprema Corte do país nesta sexta-feira (24). A sentença, que reverte uma decisão que havia sido tomada pelo mesmo tribunal há 49 anos, traz grandes impactos para a vida das mulheres e para a política americana.

A mudança não proíbe a prática, mas abre espaço para que cada um dos 50 estados adote vetos locais. Por maioria de 5 votos a 4, a corte considerou válida uma lei criada no estado do Mississippi, em 2018, que proíbe a interrupção da gravidez após a 15ª semana de gestação, mesmo em casos de estupro.

Os magistrados da Suprema Corte usaram esse caso como oportunidade para derrubar outra decisão, conhecida como Roe vs. Wade, que liberou o procedimento nos EUA. John Roberts, presidente da corte, votou para confirmar a regra estadual, sem que sua posição revertesse a decisão de 1973.

Nos anos 1970, os juízes relacionaram o aborto ao direito à privacidade, ao considerarem que os governos não poderiam interferir em uma escolha de foro íntimo da mulher —a de manter ou não uma gestação.

O direito à privacidade é garantido por duas emendas à Constituição dos EUA, a nona e a 14ª. No processo atual, chamado de Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization, a maioria dos magistrados adotou posição oposta e considerou que relacionar o procedimento ao direito à privacidade não faz sentido.

"Roe estava notoriamente errada desde o início. Sua argumentação é excepcionalmente fraca, e a decisão teve consequências danosas. E, longe de trazer uma base nacional para a questão do aborto, Roe vs. Wade tem inflamado o debate e aprofundado a divisão", afirma a decisão, elaborada pelo juiz Samuel Alito, que está na corte desde 2005 e foi indicado pelo presidente George W. Bush.

"Consideramos que a Constituição não confere um direito ao aborto. É hora de observar a Carta e devolver a questão aos representantes eleitos", prossegue a sentença, cujo documento soma 213 páginas.

Assim, estados com governos conservadores, como Texas e Flórida, devem retirar esse direito de suas moradoras, enquanto regiões sob comando progressista, como Califórnia e Nova York, tendem a mantê-lo.

A mudança deve afetar especialmente mulheres mais pobres de estados conservadores, uma vez que elas têm menos condições para viajar até outro estado onde o procedimento é autorizado. O presidente Joe Biden chamou a decisão de erro trágico que expõe "o quão extrema é a maioria conservadora da Suprema Corte" e pediu que os protestos sejam pacíficos e que os manifestantes não respondam com violência. Também lembrou que as mulheres seguem podendo viajar a outros estados para fazer um aborto.

Projeções feitas pela imprensa apontam que ao menos 23 estados devem banir o aborto de modo quase completo após a decisão. Nos últimos anos, vários estados governados por republicanos implementaram medidas para dificultar o acesso ao procedimento, em um esforço para corroer o direito aos poucos.

Uma lei federal para liberar o aborto no país todo pode ser elaborada, mas as chances de o Congresso atual aprovar uma proposta sobre o tema são mínimas. Republicanos, que se posicionam contra o acesso ao procedimento, têm poder para barrar a medida no Senado, e tampouco há consenso entre democratas para mudar o mecanismo que impede a aprovação de projetos do tipo por maioria simples.

O fim do direito constitucional ao aborto já era esperado desde maio, quando um rascunho da decisão foi revelado pelo site Politico. O vazamento provocou uma série de protestos pelo país, e o prédio da Suprema Corte passou a ser protegido por grades. Grupos de defesa de direitos das mulheres já haviam convocado atos contra a medida em várias cidades do país, para serem realizados no dia do anúncio da decisão.

A mudança histórica ocorre após o tribunal ver seu viés conservador ser ampliado, o maior legado do ex-presidente Donald Trump —ele indicou três magistrados durante o seu mandato. Os republicanos impediram o antecessor Barack Obama de fazer uma nomeação em 2016, ao final de seu governo, e correram para garantir que Trump indicasse mais uma juíza semanas antes da eleição que perdeu.

Embora tenha celebrado a decisão como "a maior vitória para a vida em uma geração", que só teria sido possível por que ele cumpriu as promessas que fez, o ex-presidente, segundo o jornal The New York Times, disse a aliados que o anúncio é "ruim para os republicanos", porque irritaria as americanas que vivem nos subúrbios, áreas ao redor do centro das cidades, uma fatia que ajudou a eleger Biden em 2020.

Neste momento, os EUA estão em meio à campanha eleitoral para as eleições de meio de mandato, votação em novembro que renovará governos estaduais e boa parte do Congresso. Muitos candidatos democratas devem usar a questão para atrair eleitores progressistas, com a promessa de ajudar a liberar o aborto em estados onde haverá veto e de proteger outros direitos. Republicanos, por sua vez, devem reforçar a posição contra o procedimento e destacar que o partido conseguiu entregar o veto que buscava.

A decisão de Roe vs. Wade mudou profundamente a política americana e, indiretamente, ajudou a torná-la mais polarizada. O combate ao aborto se tornou uma causa que une conservadores e líderes religiosos. Eles passaram anos fazendo tanto grandes protestos pelo país quanto pequenas ações, como passar horas em frente a clínicas de aborto para tentar convencer mulheres a desistirem do ato.

Uma das táticas para derrubar a decisão foi debater até que etapa da gestação as mulheres poderiam abortar. A veredito de 1973 definiu que o procedimento era livre até 12 semanas de gravidez, liberado com algumas restrições no segundo trimestre e só poderia ser vetado na terceira parte da gestação.

Em 1992, a corte julgou o caso Planned Parenthood vs. Casey, no qual confirmou o direito, com uma alteração: passou a considerar o conceito de viabilidade fetal, segundo o qual o aborto pode ser feito sem restrições até que o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero, geralmente após 22 semanas.

Nos últimos anos, esse prazo foi sendo encurtado por leis estaduais. A norma do Mississippi, agora validada pela Suprema Corte, definiu o limite de 15 semanas. Uma lei do Texas, aprovada em setembro de 2021, impede o procedimento a partir de seis semanas de gestação, momento em que muitas mulheres ainda nem sequer descobriram a gravidez. A regra considera o feto viável se o coração está batendo. Em maio, Oklahoma foi mais longe e aprovou um veto ao aborto desde o momento da concepção.

A mudança atual dá força a políticos conservadores para buscar novos passos, como propor leis que impeçam as mulheres de irem a outro estado para abortarem ou punir quem ajudá-las a buscar o procedimento. A lei do Texas abre espaço para que mesmo o motorista que transporte uma mulher a caminho de uma clínica possa ser punido, mesmo que ele não saiba da intenção dela.

Para os progressistas, há o temor de revisões de outras decisões, como a liberação do casamento homoafetivo e o uso de contraceptivos. Em reação à onda conservadora, empresas como Apple e Citibank criaram programas para ajudar mulheres a viajar a locais onde podem abortar de forma legal.

*

COMO VOTOU CADA JUIZ DA SUPREMA CORTE DOS EUA

PELA SUSPENSÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL AO ABORTO

Samuel Alito

Quem o indicou: George W. Bush (Republicano)

Clarence Thomas

Quem o indicou: George H. W. Bush (Republicano)

Neil Gorsuch

Quem o indicou: Donald Trump (Republicano)

Brett Kavanaugh

Quem o indicou: Donald Trump (Republicano)

Amy Coney Barrett

Quem a indicou: Donald Trump (Republicano)

PELA MANUTENÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL AO ABORTO

​​Stephen Breyer

Quem o indicou: Bill Clinton (Democrata)

Sonia Sotomayor

Quem a indicou: Barack Obama (Democrata)

Elena Kagan

Quem a indicou: Barack Obama (Democrata)

John Roberts*

Quem o indicou: George W. Bush (Republicano)

*Votou contra a suspensão da Roe vs. Wade, mas a favor da lei em discussão, que proíbe o aborto após 15 semanas de gravidez no Mississippi


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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