Renzi aposta o cargo em reforma legislativa
RIO e ROMA — Frente à histórica dificuldade da Itália em manter governos estáveis, o primeiro-ministro Matteo Renzi se vê nas últimas semanas de uma campanha decisiva à formação legislativa do país e ao seu destino na vida política. No poder há mais de dois anos, o premier quer reduzir drasticamente a autoridade do Senado com um referendo nacional que deverá votar, entre novembro e dezembro, uma das mais importantes reformas constitucionais desde o fim da monarquia, em 1946. De centro-esquerda, Renzi apostou todas as fichas, incluindo o seu próprio mandato, na votação. Ele argumenta que o país, hoje com quase mil legisladores em duas câmaras com o mesmo nível de poder, precisa aumentar a capacidade de governança e reduzir os custos do Estado superaparelhado.
A reviravolta busca facilitar a criação de leis, eliminando a necessidade de aprovar novos projetos no Senado e na Câmara dos Deputados, como é previsto pelo sistema de bicameralismo perfeito italiano. Em um Parlamento extremamente fragmentado, com 169 partidos nas últimas eleições, este pode se tornar um longo e penoso processo. E, ainda, a reforma tenta evitar a repetição de governos relâmpagos no país, que teve 63 comandos nos últimos 70 anos — instabilidade provocada, sobretudo, pela sobrevivência do governo condicionada à fiducia, ou voto de confiança, de ambas as casas.
Se for aprovada pelos italianos, a reforma Renzi-Boschi — que leva o nome do premier e da sua ministra encarregada de levar à frente a missão do referendo, Maria Elena Boschi — reduziria de 315 para 100 os senadores que hoje trabalham no Palácio Madama, em Roma. Estes legisladores, atualmente eleitos sob voto direto, seriam substituídos por autoridades apontadas ou eleitas indiretamente e teriam suas funções limitadas.
Os críticos ao projeto, no entanto, afirmam que o pacote de mudanças colocaria poder demais nas mãos do primeiro-ministro, em um potencial estremecimento da democracia italiana. A tendência seria que partidos pequenos perdessem assentos parlamentares no sistema idealizado por Renzi, com a ajuda de uma nova lei eleitoral para a Câmara dos Deputados, já aprovada em 2014, que prevê a concentração de quase 55% dos 630 lugares na casa para o partido que obtiver 40% dos votos nas eleições legislativas, eliminando as menores legendas. Mas, antes mesmo da primeira aplicação do “Italicum”, como Renzi chamou a regra, o governo já aceitou discutir modificações na lei, em uma aparente tentativa de negociar o apoio dos partidos que prometem votar “não”, em reprovação à reforma, no referendo.
Os italianos estão divididos sobre a consulta. No início da campanha, Renzi parecia mais confiante da vitória na antiga promessa de reformar a política. Chegou a declarar, a plenos pulmões, que ele e Boschi deixariam o governo se fossem derrotados. Mas, nos últimos meses, o “não” parece avançar na opinião do eleitorado, com o incentivo das duas maiores forças da oposição: o partido Força Itália, do ex-premier Silvio Berlusconi; e o Movimento Cinco Estrelas (M5S), do comediante Beppe Grillo — que prometem ser os mais fortalecidos por uma eventual derrota de Renzi. Uma pesquisa do Instituto Piepoli, publicada este mês no “La Stampa”, mostrou que 51% dos eleitores pretendiam votar contra a reforma. E, agora, o premier e a ministra já evitam falar em demissão, embora não neguem suas antigas declarações, sob a justificativa de não personalizar o voto dos italianos pelas suas preferências partidárias.
Favorável à causa de Renzi, a deputada Renata Bueno, que nasceu no Brasil mas tem cidadania italiana, explica que a proposta já passou por longos debates parlamentares — embora constitucionalistas ainda questionem o texto. Ela argumenta que esta é a coluna vertebral de Renzi, mas não acredita que ele ou Boschi se demitiriam.
— Renzi entrou no governo em um acordo de partidos para fazer as reformas necessárias e diminuir o custo com a política. Primeiro, a ideia era abolir o Senado e, depois de debatermos por dois anos, a proposta final foi votada pelo Parlamento — diz Renata, que fará campanha na comunidade italiana. — Mas a polêmica ficou entre quem é a favor ou contra Renzi, sem avaliar tanto a reforma.
Há quem diga que a aposta de Renzi pode repetir a história que em junho viveu o então premier britânico, David Cameron. Logo após a apertada vitória da saída do Reino Unido da União Europeia (UE) em referendo, ele deixou Downing Street — tal como prometera na sua campanha pela permanência no bloco. A eventual derrota de Renzi poderia também prejudicar a Itália na UE, com a redução da confiança internacional no país, explica Fulco Lanchester, professor de Ciências Políticas da Universidade La Sapienza, em Roma.
— Cameron personalizou a votação e foi embora. Foi uma derrota política, mas a diferença é que o Reino Unido pode se permitir este afastamento — explica. — É perigosa a personalização de Renzi, porque um referendo binário pode se virar a favor de uma questão ou contra uma pessoa. Na Itália, que usa o euro, a redução da confiança internacional é um problema. Se vencer o “não”, a Europa e os mercados internacionais não nos darão mais crédito.
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