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Origem do coronavírus volta ao centro da guerra fria entre EUA e China

Por Folha de São Paulo

16/04/2020 12h09 — em
Coronavírus


Foto: Divulgação

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A origem do novo coronavírus, que já matou mais de 135 mil pessoas no mundo, voltou ao centro da crescente disputa política entre Estados Unidos e China.

As duas maiores economias do mundo estão envolvidas em um jogo de acusações mútuas sem provas desde que a pandemia se configurou na província chinesa de Hubei, no começo do ano, que se insere no contexto da guerra comercial declarada pelo presidente Donald Trump ao assumir, em 2017.

Na nova rodada, a mão é americana, e os métodos, tradicionais. A rede de TV FoxNews, alinhada à Casa Branca, veiculou na noite de quarta (15) uma reportagem levantando suspeitas de autoridades de inteligência anônimas sobre a origem do vírus.

Até aqui, a teoria prevalente nos meios conservadores americanos era de que o novo coronavírus poderia ser uma arma biológica em estudo que escapou de forma proposital ou não do laboratório em Wuhan, o ponto zero da pandemia.

Isso foi dito por ideólogos como o radialista Rush Limbaugh, mas tal afirmação foi desmentida por um estudo internacional publicado em março na revista científica britânica Nature Medicine, que apontou a origem natural das mutações do Sars-CoV-2.

Agora, pela nova narrativa, ele seria apenas um patógeno em estudo num local com má segurança, ganhando assim as ruas por desleixo.

A FoxNews questionou Trump sobre a hipótese, e ele seguiu sua cartilha. "Cada vez mais estamos ouvindo essa história. Nós estamos fazendo um exame minucioso dessa situação horrível", respondeu na quarta.

Outro alto oficial a comentar a história também jogou na confusão. "O peso das evidências aponta para [uma origem] natural [do vírus]. Mas não sabemos com certeza", disse o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, Mark Milley, à rede CNN.

Para corroborar suas informações anônimas, a FoxNews tinha em mãos uma reportagem jornalisticamente correta do independente Washington Post. O jornal havia publicado na terça a existência de dois telegramas diplomáticos de março de 2018, oriundos da embaixada dos EUA em Pequim.

Nele, diplomatas relatavam uma visita ao Instituto de Virologia de Wuhan, o primeiro laboratório chinês com o grau máximo de biossegurança, obtido por validação internacional em 2015.

São esses locais, os chamados "nível quatro", que abrigam aqueles cientistas que mais parecem astronautas ligados a tubos de oxigênio que saem do teto, estrelas de filmes com o agora presciente "Contágio" (Steven Soderbergh, 2011).

Mas os telegramas apontavam que havia falhas de segurança e más condições de trabalho, sem apresentar evidências. O instituto estudava os coronavírus de morcegos que haviam gerado a epidemia da Sars em 2003, principais suspeitos de terem dado origem à mutação atual, o Sars-CoV-2.

A verdade ainda é nebulosa. O patógeno pode ter sido transmitido do morcego para o homem diretamente ou por meio de um animal intermediário, que algumas pesquisas sugerem ser o mamífero pangolim, que é comercializado em mercados de bichos vivos como o de Wuhan -que a China aponta como epicentro da epidemia, embora as evidências sejam contestadas por alguns cientistas.

Nesta quinta (16), o laboratório voltou a negar ter tido problema em suas pesquisas. Segundo Jim LeDuc, chefe do laboratório nível quatro de Galveston (Texas, EUA), as condições de trabalho dos chineses são idênticas às dos americanos. Ele disse ao site Vox que inclusive tinha vários trabalhos conjuntos com Wuhan.

A nova ofensiva americana surge dois dias depois de Trump ter anunciado que iria congelar o financiamento do país da Organização Mundial da Saúde. Washington é o maior custeador do órgão da ONU, tendo pago US$ 400 milhões dos US$ 6 bilhões de seu orçamento 2018-2019.

Para a Casa Branca, a entidade serve a interesses chineses, apesar de Pequim ter bancado apenas US$ 44 milhões de seus gastos no período.

Não foi só o vírus o objeto das acusações nesta semana. Um relatório do Departamento de Estado americano afirmou que a China pode estar escondendo testes nucleares de baixa potência numa instalação subterrânea em Lop Nur, um lugar remoto e desértico em Xinjiang (noroeste do país).

A partir de imagens de satélite e com a suspeita de omissão de dados sismológicos da região por Pequim, os americanos concluíram que o país pode estar violando o tratado de 1996 que proíbe testes nucleares com explosões, acusação que já haviam feito à Rússia ano passado.

Pequim negou o relato. Segundo nota da organização que regula o tratado, em Viena, não há evidências de omissões chinesas. Especialistas apontam que provavelmente o lugar é usado para os chamados testes de rendimento zero. Neles, reações nucleares são iniciadas, mas não há a sequência que leva à liberação descontrolada de energia da explosão atômica.

Esses experimentos são permitidos pelo tratado, e regulares em potências para testar a eficácia de suas armas. A China tem cerca de 300 ogivas nucleares, enquanto os EUA têm 3.800, 1,750 delas prontas para uso, arsenal comparável ao dos russos (4.330 ogivas, 1.600 a postos).

A China, ora sob ataque, nem tampouco é inocente na disputa. Primeiro, há dúvidas reais sobre o comportamento da ditadura chinesa ao lidar com o início da pandemia e a cumplicidade do direção da OMS com isso, dado que ela foi eleita com o apoio decisivo de Pequim.

Autoridades de Wuhan renunciaram por terem tentado acobertar a gravidade da situação, e é famosa a censura imposta a médicos que tentaram alertar o mundo.

Além disso, foi imposto um blecaute informativo que impede a aferição externa dos números divulgados do impacto da doença, e inúmeros relatos baseados em funerárias indicando que pode haver mais mortos que as 3.342 até aqui.

Além disso, os chineses também têm sua versão das fake news trumpistas. Em 13 de março, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian, publicou no Twitter (ao qual os chineses não têm acesso) insinuações sobre uma suposta origem americana do vírus.

Segundo essa versão, corrente nas redes autorizadas da China, o novo coronavírus emergiu depois dos Jogos Militares Mundiais, realizados em outubro de 2019 em Wuhan, tendo sido liberado por alguém na delegação de 280 atletas americanos.

Seja como for, é consenso entre autoridades de saúde que, como a pandemia já está num estágio de maior controle na China, o intercâmbio de informações é vital para ajudar a montar estratégias mundo afora, em especial sobre a duração e intensidade de quarentenas e o risco de novas ondas infecciosas.

O embate ideológico chegou até ao Brasil, onde o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ministro Abraham Weintraub (Educação) acusaram, em graus diferentes, os chineses pelo manejo da crise sanitária.

Eduardo endossou a ideia, originária do ideólogo conservador Steve Bannon, a quem é ligado, de que o Partido Comunista Chinês promovia o acobertamento de dados sobre a origem e desenvolvimento da doença.

A reação chinesa foi dura, obrigando pai do deputado, o presidente Jair Bolsonaro, a apaziguar seu colega Xi Jinping em um telefonema. Dois dias depois, coincidentemente, o Brasil liberou a participação de empresas da China na infraestrutura das redes de 5G no país -contrariando o lobby americano, que quer barrar Pequim de competições internacionais dessa nova geração tecnológica.

Weintraub, contudo, azedou novamente o cozido ao acusar a China de querer lucrar com a pandemia, segurando a venda de itens como respiradores mecânicos, com uma postagem de cunho racista que está sendo investigada pela Procuradoria-Geral da República.


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