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Guerra da Ucrânia expõe reversão de caminho que acordo entre Rússia e Otan desenhou há 25 anos

Por Folha de São Paulo

27/05/2022 13h06 — em
Mundo



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "São novos tempos", declarava Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, no dia da assinatura do primeiro acordo de cooperação econômica e militar depois da Guerra Fria entre a Rússia e a Otan, hoje em lados opostos na Guerra da Ucrânia.

O pacto, à época inesperado, foi chamado de Ato Fundador Otan-Rússia e assinado em 27 de maio de 1997, há 25 anos, eliminando formalmente os últimos vestígios da Guerra Fria oito anos depois da queda do Muro de Berlim.

Boris Ieltsin, na Presidência da Rússia, celebrou a aproximação com o Ocidente declarando que os mísseis nucleares de seu país —hoje trazidos à baila por figuras do regime de Vladimir Putin— não estariam mais direcionados para alvos de membros da Otan. A aliança militar liderada pelos EUA, por outro lado, se comprometia a consultar Moscou na tomada de decisões e a não deslocar um grande contingente militar e armamentos nucleares para as fronteiras russas.

"A Otan vai trabalhar junto com a Rússia, não contra ela", disse Clinton sobre o acordo, em termos que hoje, à luz de declarações de Putin, soam deslocados. Anos antes, a aliança militar também teria se comprometido a não interferir no poderio nuclear russo nem se expandir para o Leste Europeu, onde estão ex-repúblicas soviéticas.

Mais que as promessas de não agressão, o pacto abriu espaço para algum nível de diálogo e troca de informações sobre assuntos sensíveis de segurança —entre os principais na ocasião, em outra ironia com tempos atuais, estavam a desestabilização política do Afeganistão e o fortalecimento do Talibã após a retirada, em 1989, das tropas soviéticas do país. Manobras militares conjuntas também estavam previstas, embora não haja registros de que tenham acontecido.

"O texto gerou uma série de avanços, mas ainda assim sempre houve grande resistência contra uma aproximação militar fundamentada", afirma Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais da PUC-SP.

Ele diz que, embora a União Soviética tenha sido dissolvida em 1991, a invasão russa à Tchetchênia com o objetivo de derrotar um movimento de independência, três anos mais tarde, fez permanecer a desconfiança dos países da Otan. "Chegou-se à conclusão de que o Kremlin estava interessado em uma negociação econômica, mas, militarmente, os russos continuavam os mesmos [da Guerra Fria]."

Embora cautelosos, Rússia e Otan se aproximaram no final da década de 1990 em um contexto em que emergia uma nova ordem mundial. Segundo Trevisan, ao formalizar o pacto com o Kremlin, a Casa Branca e a Otan tentavam construir em Moscou uma espécie de terceira via entre o capitalismo e o comunismo.

"A ideia era que para resolver o problema da animosidade com a Rússia era necessário integrá-la. Moscou, por outro lado, queria recompor suas estruturas econômicas dentro da lógica da globalização."

Como pano de fundo, Trevisan diz que países da Europa ocidental tinham o interesse em barganhar o petróleo russo de modo a gastar menos. A fundação da Organização Mundial do Comércio, em 1995, foi outro fator que influenciou para a assinatura do acordo.

Gunther Rudzit, especialista em segurança internacional e professor de relações internacionais da ESPM, lembra que o colapso da União Soviética deixou a Rússia enfraquecida política, econômica e militarmente. Nesse contexto, a assinatura do Ato Fundador foi uma maneira encontrada por Ieltsin para dar à população algo como uma espécie de prêmio de consolação, que mostrasse que o país estava integrado e buscando formas para contornar a crise.

Na década de 1990, a Rússia enfrentou altas taxas de endividamento, inflação e desemprego, além de baixos índices de crescimento econômico, como resultado de uma transição acelerada para uma economia de mercado. Em 1998, a chamada crise do rublo provocou o desabamento do valor da moeda e fez o país declarar uma moratória.

A crise econômica também abriu espaço para avanço do ultranacionalismo russo, sentimento que marca, em 2000, a chegada de Vladimir Putin ao poder. A partir daí, as relações diplomáticas entre Rússia e Ocidente voltaram a esfriar.

"Ieltsin, quando estava na Presidência, tinha outra visão de mundo, que não incluía a mentalidade de restabelecer a Rússia como grande potência. Putin, por sua vez, sempre desconfiou do Ocidente", diz Rudzit.

A ofensiva russa contra a Geórgia, em 2008, provocou reações do Ocidente e fez o acordo ficar congelado. Anos mais tarde, a anexação russa da Crimeia, em 2014, considerado um ensaio do conflito atual na Ucrânia, foi o fator decisivo para, segundo o especialista, "enterrar o caixão" do Ato Fundador Otan-Rússia.


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