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Corporações são importantes demais para ficar na mão de homens de negócios, diz pesquisadora

Por Folha de São Paulo

19/01/2021 4h34 — em
Mundo



BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) - A democracia já estava em coma antes mesmo da eleição de Donald Trump, e o poder só voltará a ser “pelo povo e para o povo” sob novas estruturas políticas, afirma a cientista política Hélène Landemore, professora da Universidade Yale. Ela defende assembleias de não políticos escolhidas por sorteio, como a que decidiu mudanças na Constituição da Islândia e a que formula política ambiental na França.

Também é preciso mudar a esfera privada, diz Landemore, 45, que no ano passado lançou o “Manifesto do Trabalho”, com outras oito pesquisadoras. Segundo ela, em vez de propalar a ideia de que é preciso gestores à frente da política, o fundamental é levar a política para as empresas. “Corporações são importantes demais para ficar nas mãos de homens de negócios”, afirma.

A professora, que se define como "democrata radical", diz acreditar que é hora de mudar a forma como decisões são tomadas: "Houve quase um golpe nos EUA. Quão mais baixo teremos que descer antes de tentar algo mais radical?".

Para ela, a invasão ao Congresso só fracassou porque o presidente americano não estimulou seus partidários até o extremo, e a mensagem que ficará para outros líderes populistas do mundo será a de que “não é preciso ter medo de estimular explicitamente a violência”.

PERGUNTA - A derrota de Trump é um alívio para quem via a democracia dos EUA em risco?

HÉLÈNE LANDEMORE - Não creio. Mesmo que Trump seja impedido, há uma nova forma de populismo, com novos seguidores e gente como [o senador republicano] Ted Cruz pronta para seguir esse caminho, talvez de forma mais perigosa, por mais planejada.

Por que seria um populismo “novo”?

HL - Nos EUA não houve nada semelhante há décadas. Mas, de fato, não há nada de novo em demagogos usando tropas populistas. Alguns dos meus colegas, como [o professor de filosofia de Yale] Jason Stanley, chamaram isso de fascismo desde o começo, sob críticas dos que viam em Trump apenas um palhaço querendo aumentar sua visibilidade.

É exagero ver fascismo em Trump?

HL - Não acho que ele tivesse um projeto fascista no começo. Mas tem sede de sangue, é um “bully” [assediador, vive a intimidar os que considera vulneráveis]. Sem encontrar qualquer resistência, principalmente entre os republicanos, o fascismo foi crescendo dentro dele. Ele percebeu que isso lhe traria mais poder. Por que ele pararia? Sua personalidade autoritária, chauvinista, sexista vicejou num ambiente republicano que achou que seria capaz de controlá-lo, mas não foi.

Como e quando se percebe que o limite foi ultrapassado?

HL - Com assediadores, nunca é cedo demais para reagir. Nós deixamos que Trump prosseguisse porque fomos complacentes. O alerta máximo deveria ter acendido já nos debates eleitorais com Hillary Clinton, quando ele disse que não aceitaria uma derrota nas eleições. Deixou claro que não tinha intenção de seguir as regras.

Trump é admirado por outros líderes, como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Que mensagem fica da invasão ao Congresso e da reação a ela? Desencorajam tentativas de golpe?

HL - Não. O que líderes como Bolsonaro vão aprender é que Trump não foi ousado o suficiente. Como é um oportunista, fez um cálculo para manter aberta a possibilidade de voltar em 2024. Incitou o golpe, mas não foi até o fim.

A lição para Bolsonaro é que não é preciso ter medo de estimular explicitamente a violência. Se Bolsonaro decidir que a única estratégia é ser ousado e queimar todas as pontes, como poderia recomendar Maquiavel —escolha um objetivo e vá com tudo—, o Brasil terá problemas, porque é muito fácil arrebatar o poder. Veja quão pouca polícia havia no Capitólio. Como as pessoas se juntaram para invadi-lo. Quão rapidamente havia gente pronta a apoiar o golpe, que falhou por pouco.

O fracasso do golpe não mostra que as instituições funcionaram?

HL - Sou muito pessimista. Para mim, os rebeldes não foram ao extremo porque Trump não lhes ordenou isso explicitamente. Mas, se ele tivesse ido ao limite, o que teria acontecido? É um contrafactual, difícil de imaginar, mas preocupa. E o que pode acontecer em países em que o desespero ou a tolerância à violência são maiores?

Alguns políticos falam em diálogo com o outro lado para cicatrizar a polarização. É viável nesse ambiente de ódio “ao outro” dos dois lados da mesa?

HL - Não vai acontecer por meio de estruturas políticas clássicas. Os líderes partidários estão colocando gasolina na fogueira, porque a polarização os beneficia. Eu começaria com algum tipo de assembleia cidadã com poder para ter suas decisões implementadas, por exemplo, sobre políticas de imigração ou como sair da crise da Covid-19.

Só não vejo bem como ultrapassar 40 anos de polarização, que acompanha quase perfeitamente o aumento da desigualdade. Reduzir a desigualdade é precondição, porque ela gera muito ressentimento, e isso inflama o populismo. O que os números sobre o Congresso americano nos dizem? Que ele é controlado pelos 10% mais ricos para os 10% mais ricos, especialmente para o 1%. A ideologia da classe dominante foi fingir que isso continua sendo democracia, quando é uma plutocracia, uma elitocracia fantasiada de democracia. As pessoas começam a pensar “se isso é democracia, não estou interessado; prefiro um líder autoritário que combata a corrupção e reduza o abismo”.

O que a sra. está dizendo é que a democracia já estava em coma? É um passo além dos alertas de que ela corre risco de morrer envenenada por dentro, como argumenta [o professor de Harvard Steven] Levitsky?

HL - Levitsky e [Daniel] Ziblatt [autores de “Como as Democracias Morrem”] têm uma definição mínima do que é democracia. Resume-se ao Estado de Direito e às normas constitucionais. Não se trata do poder exercido pelo povo para o povo. Para eles é satisfatório que seja exercido em nome da maioria e beneficie o povo. Talvez a barreira do aceitável tenha descido demais. A desregularização e a desindustrialização foram rápidas e brutais demais. A democracia, além de não ser pelo povo, deixou de ser para o povo. E a esquerda foi cúmplice. Também viraram um partido para os 10%, de democratas-caviar. Os trabalhadores preferiram Trump, que ao menos fala a língua deles.

Como a sra. se situa politicamente?

HL - Como social-democrata. Mas talvez seja mais correto falar em procedimentalista radical, ou democrata radical, porque não foco mais políticas públicas e acho que eleições não bastam; é preciso mudar a forma como decidimos. As pessoas a quem estamos dando poder nunca vão ousar ultrapassar certos limites. Não há bem que venha de um Congresso em que 82% dos membros representam os 10% mais ricos. Defendo assembleias cidadãs com poder de decisão, cujas decisões sejam implementadas pelo governo. Não é uma solução perfeita, mas vale a pena tentar. Estamos num momento em que houve quase um golpe nos Estados Unidos. Quão mais baixo teremos que descer antes de tentar algo mais radical?

A sra. faz parte de um grupo que acaba de lançar um manifesto pela democratização do trabalho. É outra tentativa mais radical?

HL - Uma das frases mais fortes do [senador republicano] Mitt Romney quando concorreu contra Barack Obama na eleição de 2012 foi “sou um gestor, um homem de negócios, por isso devo assumir o governo”. Trump também usou esse argumento: “Sei como administrar uma empresa, saberei administrar o país”. O neoliberalismo produziu homens de negócios que pensam que são mais capazes de governar que os políticos. É preciso dar meia-volta. Corporações são importantes demais para ficar nas mãos de homens de negócios, principalmente com o impacto que elas têm na esfera pública.

Precisamos que as corporações sejam orientadas por pessoas que entendem as condições democráticas para a vida política, que façam as empresas assumirem suas responsabilidades. Em vez de colocar gestores na política, temos que colocar políticos nos negócios. Democratizar a economia. É impossível haver democracia política se não houver empresas democráticas em que os trabalhadores têm poder, ou famílias democráticas em que seus membros têm poder.

A crítica será a de que é preciso ser lucrativo, viável economicamente.

HL - Sim, mas a sociedade pode construir as condições. Leis, regulações, mecanismos financeiros podem apoiar. Nosso próximo passo será trabalhar com companhias dispostas a tentar novas formas de governança. Já há executivos que entendem que a democracia só estará a salvo se o mundo corporativo também mudar.

Vocês se descrevem como um grupo de pesquisadoras mulheres. O gênero faz diferença?

HL - Não foi algo proposital, mas esse é um grupo realmente colaborativo, não movido por egos. Algumas de nós têm alguma visibilidade, mas desde o começo foi um projeto coletivo. Gênero importa, no fim, porque mulheres acabam sendo, por necessidade, mais colaborativas.

Mas um integrante masculino seria rejeitado?

HL - Manteremos o grupo de nove mulheres porque está funcionando bem, mas já trabalhamos em colaboração com homens. Não chegamos a teorizar isso, mas, no fundo, não queríamos acabar reféns dos atores tradicionais desse campo, que são homens, e ter um homem representando o grupo. Não queremos ninguém nos representando. Queremos só ser um grupo.

RAIO-X

Hélène Landemore, 45

Professora titular de ciência política da Universidade Yale desde 2009. Franco-americana, tem mestrado em ciência política pela Sciences-Po (Paris) e em filosofia pela Sorbonne-Paris 1 e doutorado em ciência política pela Universidade Harvard. Pesquisa teoria democrática, filosofia da economia e democracia do ambiente de trabalho, entre outros temas.

É autora de "Open Democracy" (Princeton University Press 2020, sem tradução no Brasil), em que defende novas formas de representação democrática baseadas em sorteio, e cofundadora do movimento Democratizing Work (democratizando o trabalho, em inglês).

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