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Comissão do Senado dos EUA veta uso de verbas para remover quilombolas em Alcântara

Por Folha de São Paulo

19/10/2021 18h06 — em
Mundo



WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - A Comissão do Senado dos EUA responsável pela alocação de verbas determinou que o governo americano impeça que recursos destinados a ações no Brasil sejam usados na remoção de comunidades indígenas e quilombolas da região de Alcântara, no estado do Maranhão.

O veto foi incluído na proposta de orçamento para o ano fiscal de 2022 do Departamento de Estado, que inclui verbas para ações dos EUA no exterior. "A Comissão está preocupada com os relatos de que o governo do Brasil planeja forçar a realocação de centenas de famílias quilombolas para expandir o Centro de Lançamento de Alcântara. Nenhum dos recursos providos por esta lei ou por leis anteriores podem estar disponíveis para forças de segurança do Brasil que se envolvam em reassentamentos forçados de comunidades indígenas ou quilombolas", afirma o comitê no documento.

O órgão é liderado pelo democrata Patrick Leahy, mas a construção do orçamento é um esforço bipartidário. Apresentado na segunda (18), o documento ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Casa. As leis sobre o orçamento do governo dos EUA são apresentadas de modo separado, mas debatidas em conjunto. Os democratas podem aprovar leis orçamentárias sem apoio republicano, ao usar o mecanismo chamado de reconciliação.

No entanto, há uma divisão dentro do próprio partido. Dois senadores democratas se posicionaram contra incluir um plano trilionário de investimentos sociais e ambientais, defendido pelo presidente Joe Biden e por democratas progressistas, dentro do pacote a ser aprovado via reconciliação, o que tem travado a aprovação do orçamento. Além disso, os parlamentares também precisam decidir, até dezembro, sobre aumentar ou eliminar o teto de endividamento do país.

A proposta de orçamento do Departamento de Estado prevê US$ 17 milhões (R$ 94,5 milhões) para ajuda ao desenvolvimento do Brasil, a serem administrados pela Usaid (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional), e outros US$ 20 milhões (R$ 111 milhões) para ações relacionadas a programas ambientais na Amazônia brasileira.

Os EUA e o Brasil fecharam um acordo para que os americanos utilizem a base de Alcântara, no Maranhão, para lançamentos de foguetes. O acerto foi firmado inicialmente entre os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro em março de 2019 e depois aprovado pelos Congressos dos dois países. O decreto de promulgação do tratado foi assinado pelo líder brasileiro em fevereiro de 2020.

Pelo acerto, os americanos poderão fazer uso comercial da base em troca de recursos para que o Brasil invista no desenvolvimento do programa espacial brasileiro. Na época da negociação, estimava-se que o país poderia receber até US$ 10 bilhões por ano. O governo diz que seguirá com controle total da base, e que os americanos farão um uso comercial do espaço, mas sob jurisdição brasileira.

Em outubro de 2019, o jornal Folha de S.Paulo mostrou que um plano para remover cerca de 350 famílias de quilombolas da região estava em fase avançada. Elas seriam retiradas dali para permitir a ampliação do CLA (Centro de Lançamentos), comandado pela Aeronáutica, a fim de alugar espaços para operações de outros países.

Em março de 2020, o governo publicou uma resolução que previa a remoção de moradores locais para ampliar a base. Uma decisão da Justiça Federal, porém, suspendeu a retirada. O Ministério Público Federal também recomendou o adiamento em razão da pandemia de coronavírus. Assim, em abril de 2020, o governo federal se comprometeu a não remover quilombolas do território de Alcântara enquanto durar a pandemia de Covid-19. O compromisso foi firmado entre Ministério da Defesa, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e MPF (Ministério Público Federal).

Há o temor, no entanto, de que a melhora na situação da pandemia no país possa levar o governo a rever sua posição. "A questão está um pouco adormecida, mas a gente sabe que eles [o governo] não estão parados", diz Célia Pinto, coordenadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos).

Ela estima que 800 famílias possam ter de deixar a região caso os planos de expansão das atividades da base avancem. E conta que a comunidade local tem avançado na criação de um protocolo para dialogar com o governo sobre as possibilidades de retirada. "Não é só vir aqui e fazer uma audiência pública. É preciso ter um caminho para chegar a um consentimento", diz a coordenadora.

Os quilombolas apontam que o Brasil é signatário de uma convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que determina que povos tradicionais precisam ser consultados de forma adequada antes da execução de projetos que impactem seus territórios.

Procurado, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação disse que a base atual pode receber mais lançamentos sem precisar ampliar sua área ocupada. "A tendência mais atual é o uso de satélites de pequeno porte. Desta forma, nesta categoria, os foguetes também são de menor porte e requerem áreas de segurança menores, o que coincide com a atual capacidade existente e disponível para o início das operações do Centro Espacial de Alcântara", disse o órgão, em nota. O ministério não estimou data para o começo das atividades.

Fundado em 1648, o município de Alcântara chegou a ter 133,3 mil escravos. A cidade tem atualmente 21,8 mil moradores, dos quais 77% se declararam quilombolas.

Para eles, agora há uma reedição do que viveram a partir de 1983, quando a ditadura militar (1964-1985) realizou a remoção de mais de 300 famílias de 24 povoados para a criação do núcleo central do CLA. Célia conta que famílias que deixaram a região na época levam décadas tentando obter os títulos de propriedade das áreas que ocupam. Alguns moradores a receberam quase 40 anos depois, mas a maioria segue esperando, segundo ela.

"Se você vive da pesca e vai pra uma área longe do litoral, como vai sobreviver? Como vai obter seu alimento fresco, plantar seu milho, seu feijão, em um lugar onde não tem como fazer isso?", questiona a coordenadora. "A intenção da maioria, por enquanto, é não sair. Não somos contra o progresso, mas desde que ele não venha em detrimento da nossa morte."

A coordenadora também disse que a comunidade de Alcântara tem buscado apoio estrangeiro para a causa, e que enviou cartas e pedidos para vários órgãos internacionais, com ajuda de entidades brasileiras.

Nos últimos meses, congressistas democratas e ativistas progressistas têm aumentado a pressão para que o governo de Joe Biden mantenha distanciamento do presidente Jair Bolsonaro, apontando violações de direitos humanos, atos antidemocráticos e destruição ambiental no Brasil.

Só em 2021, houve pelo menos seis cartas e comunicados de deputados e senadores ao presidente americano, ao secretário de Estado, Antony Blinken, e ao assessor de Segurança Nacional, Jake Sullivan, pedindo endurecimento da política externa dos EUA em relação ao governo Bolsonaro.


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