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Artigo: Bilionário transforma campanha em cultura pop

Por Agência O Globo

23/10/2016 3h00 — em
Mundo



Para quebrar o gelo, pergunto a meus alunos da aula de comédia e humor americano: “Quem é a pessoa mais engraçada dos Estados Unidos?” Em julho do ano passado, o primeiro retorno divertido foi “Donald Trump”. Essa não foi a resposta à questão este ano.

O que mudou? Ele ficou menos engraçado? Mais sério? Obviamente, os interesses mudaram. Ele está a alguns estados indefinidos de se tornar presidente, algo impossível de se conceber no ano passado, e impossível de aceitar agora.

Ele foi de uma personalidade milionária, o-destino-de-Gary-Busey-no-“Aprendiz-Celebridade” da cultura pop, a uma figura política trilionária, o-destino-do-mundo. Ficou muito real.

A mudança é cultural. Em vez de questionar os usos da cultura pop por Trump ou Hillary Clinton, a questão é se a campanha presidencial é cultura pop. A campanha pela Presidência definitivamente tem uma cultura. Qualquer coisa que dure tanto deve ter, especialmente se muitos a assistem — e ainda mais se estes incluem um ciclo contínuo de notícias que cada vez mais incorpora o jornalismo internauta e mídias sociais.

Dito de outra forma: Trump tem usado a cultura pop melhor que Hillary, pois força a campanha a se tornar, quase inteiramente, cultura pop. É o domínio do entretenimento de massa, como cinema, mídias sociais e reality shows, consumidos, distribuídos e criados segundo os gostos mutáveis e arraigados do público e produtores que alimentam uns aos outros.

É algo, como Trump diz sobre o Twitter, do qual nós não deveríamos “estar envergonhados”. E como o teórico da cultura Stuart Hall escreveu, a cultura popular “é a arena do consenso e resistência. É parcialmente onde a hegemonia emerge, e onde está garantida”.

Por exemplo, “construir um muro” é o mais básico de uma política de imigração. É, no entanto, um espetáculo estimulante, uma fria abertura poderosa a um ato de comédia ultrajante que pega, espalhado pela palavra de bocas reais e virtuais.

Os selos cômicos de Trump são reacionários e grosseiros: piadas contra gordos (Rosie O’Donnell); hipérboles sexistas (a menstruação de Megyn Kelly); imitações de deficientes (o repórter do “New York Times” Serge F. Kovaleski); repreensões contra mulheres (“Castiguem-nas!”); farpas étnicas (“Mexicanos são estupradores”); estereótipos raciais (“criminalidade negra”); provocações religiosas (respondendo a uma pergunta sobre islamofobia no último debate, repetindo “terroristas radicais islâmicos”); e mais, território desconhecido, como o desdém por prisioneiros de guerra e famílias de soldados mortos.

Como fazem os comediantes experientes, ele toma o controle do ambiente pela dominação física do palco, empurrando a plateia à submissão, o que acaba sendo uma audiência mundial.

Os efeitos desse público global afetam Trump e seu desempenho na medida em que compreendem sua próxima multidão adoradora. Então, esqueçam qualquer um fora dos Estados Unidos, como a Otan, a menos que o apoiem, como o defensor do Brexit Nigel Farage.

Como muitos homens, comediantes do establishment no despertar do furor em torno da piada sobre estupro de Daniel Tosh, seus parceiros de performance, o Partido Republicano, têm apoiado seu direito de dizer o que quiser para conquistar uma risada ou voto, elogiando seu destemor desviante em um corrupto mundo politicamente correto.

A mídia relatou seu ato e fez pouco para que prestasse contas. Mas seus apoiadores e representantes enrolam e tumultuam e ofuscam, de modo que as reportagens sejam apenas parte da cena, como drinques servidos em um show de comédia: apenas estimulam as respostas e espalham os jargões.

Hillary está reduzida a uma confrontadora insistente. Confrontadores nunca se saem bem. Eles destroem performances. Irritam a todos.

Barack Obama, no papel de comediante-chefe no jantar dos correspondentes em 2011 na Casa Branca, desmontou Trump e suas mentiras com piadas dignas de Don Rickles ou Jeff Ross.

Mas Obama tinha o microfone; ele parecia muito melhor do que Hillary, como confrontadora, pode possivelmente ser. Ele atacou as referências de Trump (“Roubei minha frase sobre Gary Busey do Obama”) e a banalidade da vida pública dele. Acima de tudo, a instigação acendeu o fogo em Trump, inflamando, como a mídia, o ânimo de sua campanha. Além disso, Hillary não pode “ganhar” na cultura pop. Ela admitiu isso no discurso da Convenção Nacional Democrata:

“A verdade é, ao longo desses anos no serviço público, a parte do ‘serviço’ sempre veio com mais facilidade a mim do que a parte ‘pública’. Entendo que algumas pessoas simplesmente não sabem o que pensar de mim”.

As tentativas planejadas de alcançar os jovens — “Mais como Chillary, estou certo?” (num jogo de palavras para mostrá-la cool) — são instantaneamente ridicularizadas pela inautenticidade. Tudo o que ela tem são décadas de experiência, muitas conquistas, qualificações inigualáveis e o apoio do establishment democrata e de sua equipe de campanha altamente qualificada e bem financiada.

E ainda, Hillary é um alvo da cultura pop: uma mulher. Na extensão de seu tempo na vida pública, por sua vez, nenhum candidato político homem recebe o escrutínio sobre roupa, conduta, saúde, relações íntimas e idade como ela.

O vídeo de Trump se gabando de apalpar mulheres com “permissão” por ser uma celebridade nada revela de novo além da existência das imagens. Todos, incluindo os que votaram em sua indicação e que votarão nele para presidente, sabem que ele é assim. Agora, é impossível negar.

Muitos homens, dentro e fora de vestiários, são assim, especialmente homens no poder (como o peso-pesado da Fox News e consultor de Trump Roger Ailes, que caiu em desgraça). Faz parte do poder, da cultura. O apoio e defesa contínuos de Trump sugerem que isso é inspirador.

O que está no processo de mudança é a cultura popular e, sendo assim, a campanha presidencial.

As ondas do feminismo desde os anos 1970, suas influências na lei (lembram quando era legal um marido estuprar sua mulher?) e suas expansões de consciência, seguidas pela democratização e descentralização da produção cultural, criaram uma seção cada vez mais noticiada, escutada e poderosa de perspectivas, experiências e realidades impossíveis de ignorar.

Mais de um milhão de mulheres relatou pelo Twitter relatos de abusos no dia seguinte à publicação dos vídeos de Trump.

O famoso policiamento da cultura pop, pelo qual declarações e ações são analisadas por discriminação de gênero, raça, capacidade, sexualidade — qualquer diferença ou variação que seja usada para enfraquecer o outro —, significa que, apesar desse aumento, Trump está partindo para cima contra uma barreira que ele mesmo trouxe à campanha ao torná-la cultura pop.

O nível está bem baixo — xenofobia, inexperiência total e abaixo disso. Mas, com a provável eleição de Hillary, só pode aumentar.


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