Compartilhe este texto

Separatismo de partido vitorioso na Irlanda pode levar a volta da violência

Por Folha de São Paulo

16/02/2020 7h01 — em
Mundo



BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) - Nem o próprio Sinn Féin esperava liderar a preferência dos irlandeses nas eleições parlamentares do último final de semana. Após três derrotas desde 2018, a reviravolta era tão improvável que o partido lançou apenas 47 candidatos para os 160 lugares da Assembleia Nacional.

O resultado desmentiu o clichê "é a economia, estúpido", deixando para trás o governo que tirou o país da bancarrota em 2010, recuperou o crescimento em uma década e levou ao pleno emprego.

"O que o eleitor está dizendo é que o crescimento econômico precisa se transformar em melhores serviços públicos", diz o cientista político irlandês Bill Kissane, especialista em democracia e em história da Irlanda e professor da London School of Economics.

É um descontentamento registrado neste mês por uma pesquisa do instituto Ipsos -63% disseram não ter sido beneficiados pelo crescimento, principalmente os mais jovens, atingidos pela alta dos preços de moradia.

Os aluguéis subiram 40% nos últimos cinco anos, enquanto os salários, 14%.

Investimento em habitação, saúde e transporte foram os principais temas da campanha do Sinn Féin, que levou só 12% dos votos dos maiores de 65 anos, mas um terço dos que têm menos de 35 anos.

São justamente os que têm menos memória da luta armada pela unificação da ilha, que deixou mais de 3.600 mortos nas décadas de 1960, 70 e 80.

Mas o fantasma do conflito não está afastado, segundo Kissane. Apesar do perfil modernizado da presidente, Mary Lou McDonald, sua primeira declaração foi por um referendo sobre as fronteiras.



PERGUNTA - Vinte anos depois do acordo de paz, há ligação entre o Sinn Féin atual e o IRA dos ataques terroristas?

BILL KISSANE - Na Irlanda do Norte, antigos membros do IRA seguem no partido e quem apoia a pauta do IRA vota no Sinn Féin. Mas é a face política que tem se fortalecido.



P. - E na República da Irlanda?

BK - A própria McDonald é de uma nova geração de políticos.

Foi muito útil para o Sinn Féin que ela fosse a líder, porque ninguém pode conectá-la ao IRA. É muito mais aceitável para a parte sul da ilha. Ainda assim, a opinião pública está dividida. Parte vê o partido como um problema, mas defende o processo democrático.



P. - O sucesso eleitoral pressiona para que eles sejam aceitos?

BK - Indica que precisam ser incorporados ao sistema, chegar ao governo. A questão é se será agora ou na próxima eleição.



P. - O Sinn Féin só não ganhou mais assentos nesta eleição porque não lançou candidatos suficientes. Uma nova eleição os favoreceria, com chance de lançar mais nomes?

BK - Sim, principalmente no curto prazo. Se forem excluídos de um governo pelos outros dois grandes partidos, vão se mostrar como vítimas do establishment. Na campanha, já foram capazes de jogar o jogo do outsider.

Daqui a cinco anos é difícil dizer, porque um dos aspectos complexos desta eleição é como uma legenda extremamente impopular há um ano conseguiu reverter esse quadro.



P. - Alguns analistas atribuem a virada à campanha que priorizou problemas como moradia e deixou de lado a unificação.

BK - O foco em políticas sociais não é uma surpresa, o Sinn Féin é identificado com as classes trabalhadoras. Mas o governo fracassou em entender o humor do eleitorado.

Houve recuperação econômica, pleno emprego, mas as pessoas não sentem os benefícios disso, e o Sinn Féin soube explorar a insatisfação.

Mas o partido não abandonou a causa ideológica. No minuto em que ficou clara a vitória, McDonald voltou o debate para a unificação.



P. - No governo, ao que devem dar prioridade?

BK - Se formarem um governo e forem incapazes de melhorar os serviços públicos, vão se voltar com força para os ideais nacionalistas.

É preciso lembrar que nenhuma dessas pessoas esteve no poder, nenhuma tem qualquer experiência executiva, estão começando do zero.

Alguns de seus políticos são admiráveis, mas não será fácil resolver questões como a saúde, que os governos vêm tentando reformar há 35 anos.

McDonald nunca foi testada. É capaz, esforçada e muito séria, mas tende a exagerar os argumentos e não está claro qual o grau de influência sobre ela da facção mais dura do partido.

E, para governar, o Sinn Féin precisará se coligar com partidos com os quais nunca se uniu antes. Há desafios, requer tempo de aprendizado.



P. - Quanto do sucesso se explica pela busca de um outsider, como em outros países?

BK - Não é um caso clássico de outsider populista. Eles não falaram sobre imigração, brexit, União Europeia. Ao mesmo tempo, é evidente que o Sinn Féin usa esse discurso antiestablishment para ganhar poder.

Mas nós, cientistas políticos, ainda não sabemos o que aconteceu nesses últimos sete ou oito meses. O próprio Sinn Féin foi surpreendido. Perceberam uma onda no humor do eleitorado e a aproveitaram.



P. - É um sinal de fadiga de sistemas bipartidários?

BK - O que dá para dizer é que os eleitores não foram capazes de atribuir ao governo de Leo Varadkar seus pontos fortes: as negociações do brexit, as reformas sociais progressistas em relação ao aborto e ao casamento gay, a recuperação econômica e o baixo desemprego.

A campanha não foi um julgamento do Fine Gael [partido de Varadkar]. É um problema para a democracia que a política esteja sendo pensada em termos da "não realidade".



P. - Cresce a chance de haver um conflito?

BK - O espírito do acordo de paz era o de desenvolver relações com os britânicos, com os unionistas da Irlanda do Norte [que defendem a permanência no Reino Unido] e entre os diferentes grupos dessa região. Isso vai ficar mais difícil, porque o Sinn Féin está tomando a decisão mais radical ao falar em referendo.



P. - Um acordo de paz exigiria maioria dos dois lados. O que aconteceria na Irlanda do Norte?

BK - Pode haver um grande choque, pois, se ela conseguir mobilizar os republicanos [que querem a separação do Reino Unido], automaticamente haverá uma contra-mobilização dos unionistas.

Há duas formas de tratar da reunificação irlandesa. Uma seria a silenciosa, esperando que no longo prazo a demografia do norte mudasse tão significativamente que a união da ilha fosse inevitável.

O Sinn Féin está escolhendo a outra, chamando imediatamente um referendo quando eles nem sabem se conseguirão apoio suficiente no norte.

Será um trajeto turbulento.

O eleitorado irlandês terá que decidir se quer seguir o Sinn Féin e quebrar o equilíbrio que havia se instalado nas relações anglo-irlandesas desde os anos 1980.



P. - Pode voltar a violência?

BK - As relações evoluíram dentro da Irlanda do Norte, mas isso leva tempo, e não sei se tivemos o necessário. Muitos querem a paz, e em eleições anteriores partidos que não demonstraram compromisso com a divisão de poder foram punidos.

Essa foi uma das razões pelas quais tanto os unionistas quanto o Sinn Féin aceitaram voltar ao governo, para evitar que seus votos escoassem para os partidos moderados.

Não dá para confiar que haja paz estabelecida. A violência pode voltar, principalmente com referendos sobre a fronteira. É uma questão de preto ou branco, que vai dividir toda a comunidade. Mesmo que só uma minoria queira usar a força, o clima será de confronto. É muito difícil prever.

Muitos acreditam que não existe a chance de voltarmos para os anos turbulentos [The Troubles, como são conhecidos em inglês], mas isso não levava em conta a possibilidade de referendos.



P. - A unificação é possível?

BK - Se vier, precisa ser algo de longo prazo. O interessante é que McDonald fala essa linguagem, ela entende a importância da cautela, de existir um consenso firme para a unificação. Nós vimos o que o brexit fez com o Reino Unido, nós sabemos que o referendo pode desestabilizar as coisas. Mas o Sinn Féin precisa se justificar com seu eleitorado.

Siga-nos no
O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

ASSUNTOS: Mundo

+ Mundo