Morre Jards Macalé, artista multifacetado que marcou a MPB, aos 82 anos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Morreu nesta segunda-feira (17), aos 82 anos, o músico Jards Macalé. O artista estava internado no hospital da Unimed da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ele faleceu após uma parada cardíaca em decorrência de choque sético e insuficiência renal. Macalé havia passado por um procedimento cirúrgico na semana passada e estava internado desde o dia o primeiro de novembro.
"Jards Macalé nos deixou hoje", publicou sua equipe nas redes sociais. "Chegou a acordar de uma cirurgia cantando 'Meu Nome é Gal', com toda a energia e bom humor que sempre teve."
Caetano Veloso lamentou a morte. "Sem Macalé não haveria 'Transa'. Estou chorando porque ele morreu hoje. Foi meu primeiro amigo carioca da música. Antes de Bethânia imaginar que seria chamada para 'Opinião', Alvaro Guimarães, diretor teatral baiano, me trouxe ao Rio para montar e mixar o curta para o qual eu tinha feito a trilha. Fui parar na casa de Macalé. E ele tocou violão. Me encantei", disse. "Ele tocou com Beta, lançou composições, chamei-o para Londres e 'Transa'. Na volta, ele e eu seguimos na música. Que a música siga mantendo a essência desse ipanemense amado."
Uma das últimas aparições de Macalé nos palcos foi no fim de setembro, no festival carioca Doce Maravilha. O músico levou o público ainda tímido à emoção apresentando as canções de seu disco homônimo de 1972. Lançado no período mais repressivo da ditadura militar, versos como "não me calo", "já comi muito da farinha do desprezo" e "também posso chorar" soam atuais quando entoados por jovens de roupas coloridas.
Há dois anos, o músico lançou "Coração Bifurcado", álbum com participações de Maria Bethânia e Ná Ozzetti. Com 12 canções, o trabalho tratava das diferentes formas do amor. "Diante do cenário de genocídio emocional, pai brigando com filho, marido brigando com a sogra, uma porradaria horrorosa, ninguém falava de amor", ele afirmou na ocasião do lançamento. "Estava na hora de retomar o amor que eu tenho para dar e fazer um disco de amor como gesto político."
Em "Besta Fera", de 2019, Macalé retratou o governo de Jair Bolsonaro como um período de trevas. Depois, ele se engajou na tentativa de pacificar o país, ainda dividido pela ideologia política. O cantor disse que se sentia confiante, depois de ter feito um show na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, em 2023. "Quando Lula subiu a rampa com a Janja e aquela vira-lata, eu me senti o próprio vira-lata."
Nascido na Tijuca, Jards Anet da Silva passou a juventude entre Copacabana e Ipanema, nas mesas da Churrascaria Pirajá e do restaurante La Fiorentina. Com Nara Leão, a afinidade foi instantânea. Ela havia rompido com o lirismo descompromissado da época, unindo a bossa nova à música dos morros. Na época, chegou a acompanhar a cantora ao violão em shows no clube Caiçaras, na Lagoa.
No ensaio biográfico "Eu Só Faço o que Quero", Fred Coelho assinala que, em diversos momentos da carreira, Macalé andou em grupos, mas nunca fez parte deles de fato. Ao contrário, se preocupava em fundar sua própria linguagem artística.
Assim, na era dos festivais, ficou deslocado, porque ainda se detinha à poética viniciana. Nos anos 1970, foi um dos agentes do processo de eletrificação da música brasileira, adquirindo a face mórbida e romântica dos sucessos "Só Morto" e "Hotel das Estrelas", de 1970 e 1972, respectivamente.
Embora não se considerasse um tropicalista, Macalé colaborou de maneira definitiva com o movimento e seus integrantes. Enquanto Caetano e Gilberto Gil estavam exilados em Londres, ele foi um parceiro importante para Gal Costa que àquela altura se tornou a principal representante da música tropicalista na ausência da dupla.
Macalé não só produziu o disco "Legal", de 1970, como compôs para a cantora, incluindo músicas como "Mal Secreto" e "Vapor Barato", ambas em parceria com o poeta baiano Waly Salomão. A segunda delas, aliás, se tornou uma das principais músicas do repertório da cantora e também do próprio Macalé.
Em 1971, ele estava no Carnaval em Salvador quando Maria Bethânia apareceu para dizer que o irmão ligaria de Londres. Foi quando veio a convocação para reunir uma banda, embarcar para a capital inglesa e ser o diretor musical de "Transa", um dos discos mais cultuados de Caetano.
É ele quem toca o violão na abertura de "Nine Out of Ten", música que começa narrando um passeio por Portobello Road, então reduto da comunidade jamaicana na cidade. Foi nessa região que Macalé tomou conhecimento do reggae, gênero que é citado na letra e do qual ele se apropriou no violão.
À Folha de S.Paulo, o carioca contou que trocou um samba por um reggae. "O cara disse te ensino a batida do reggae se você me ensinar a do samba. Aí aprendi aquela célula. Ensinei a do samba, e ele ficou lá tentando. Acho que está tentando até hoje."
De volta ao Brasil, Macalé fez seus disco mais importante o autointitulado, de 1972.
Apesar da longa trajetória musical, ele também contemplou várias outras expressões artísticas ao longo de sua vida. Em seis décadas de carreira, atuou no cinema, na televisão, no teatro e nas artes plásticas. A música, entretanto, se mantinha enquanto elo comum de sua carreira multifacetada.
Entre suas credenciais, compôs trilhas sonoras e atuou em diferentes filmes do cineasta Nelson Pereira do Santos, como "O Amuleto de Ogum" e "Tenda dos Milagres". Macalé também compôs para ativações e apresentações artísticas de nomes centrais da arte contemporânea brasileira, como Lygia Clark e Helio Oiticica.
A relação entre Macalé e Oiticica, aliás, é o centro do documentário "Macaléia", curta-metragem lançado no ano retrasado que apresenta a trajetória anárquica da dupla e as obras experimentais produzidas por eles, que desafiaram os padrões artísticos da época.
A "Macaléia" do título, inclusive, se refere a uma obra que Oiticica desenvolveu especialmente para Macalé em 1978, um de seus penetráveis obras do artista que permitem a entrada e o atravessamento de corpos humanos.
Marcada pela ruptura de padrões e costumes culturais da época, a trajetória de Macalé associou a ele, durante muito tempo, o apelido de artista "maldito". Com o passar das décadas, por outro lado, a sua influência sobre a MPB foi reconhecida como elementar e ele abandonou essa posição secundária.
Ele também ficou reconhecido pelo apelido de "Anjo Torto", figura que aparece em sua música "Let's Play That', do álbum Jards Macalé, lançado em 1972. Na letra da canção, Macalé faz referência ao Anjo Torto de Carlos Drummond de Andrade, que aparece em "Poema de Sete Faces", escrito pelo poeta em 1930. No poema, a figura em questão é um ser desajustado e que cuja personalidade o mantém à margem.
Macalé deixa a mulher, a cineasta Rejane Zilles.
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