A busca por vestígios em corpos mutilados
MANAUS - Amparada por uma assistente social no prédio do Instituto Médico Legal de Manaus, a empregada doméstica Rosana Pereira Cardoso, de 36 anos, buscava na memória vestígios das tatuagens do filho:
— No braço tinha escrito o nome dele, Wendel. No pulso esquerdo era Gabi, a ex-mulher, no antebraço meu nome, Rosana. Rodando o braço dele, não sei se o direito ou o esquerdo, era “tudo posso naquele que me fortalece”. Ah, nas costas tinha um dragão montado, mas ainda não tava tatuado.
Todos os 56 corpos da chacina do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) tiveram os corpos decapitados ou mutilados, informou o perito criminal Joe Braga, que na noite de ontem acumulava 36 horas de trabalho no IML. Como o prédio tem apenas 20 gavetas para o serviço, um caminhão frigorífico usado para transportar comida foi improvisado como depósito de corpos.
O primeiro passo do trabalho era tentar coletar impressões digitais — pouco menos da metade (25) das vítimas teve alguma parte identificada dessa forma. O desafio era cruzar informações com as levadas por familiares sobre seus parentes — como as tatuagens do filho de Rosana — com as características de fragmentos de corpos que foram numerados e catalogados.
Situações mais difíceis só serão solucionadas com exame de DNA, em até cinco dias, promete o governo do Amazonas. Até a noite de ontem, 39 dos 56 corpos tinham sido identificados, e dez deles, liberados para serem velados pelas famílias. O Ministério da justiça não tinha, até ontem, informações sobre quem seriam os chefes das facções responsáveis pelo massacre.
— É um quebra-cabeça. Se não bloquear a entrada de pessoas na entrada (do IML), não temos como controlar (o trabalho da perícia), é muita gente para tentar identificar — explicava Braga aos familiares dos detentos, que tentavam entrar no prédio para ajudar a localizar seus mortos.
Ontem, duas histórias possíveis afligiam quem aguardava sob o sol em frente ao prédio da polícia científica estadual: nas próximas horas receberiam a triste notícia de confirmação da morte do ente querido, ou ganhariam o alívio de saber que, na verdade, ele era um sobrevivente. A lista de suspeitos de terem morrido ou fugido da unidade penitenciária tem 75 nomes. Pelo menos 19 estariam vivos.
— Tive com meu filho antes do Natal. Ia voltar neste sábado pra levar uma sandália que ele pediu e comida feita: arroz, bife, macarrão. Ia levar também refrigerante, um bolo feito. Ele comia lá com os outros — contava Rosana Pereira.
— A esperança de encontrá-lo vivo é de uma em um milhão. Mas é nossa esperança — completou o irmão de Rosana, Rosilei Cardoso, quando uma mulher desmaiou ao seu lado.
— Meu Deus... Acho que foi confirmado algum parente dela — imaginava Rosana.
Quem caiu no asfalto foi Ioná Soreia Cavalcanti, de 26 anos, grávida de dois meses do marido Ian Gabriel dos Santos, de 28, um dos suspeitos de terem morrido na chacina. Ela foi atendida no local por uma ambulância do Samu. Mas o veículo não partiu, depois que os médicos constataram que ela precisava apenas se alimentar.
— Tá aqui há dois dias sem comer porque o marido tá lá dentro — disse a técnica em enfermagem Sara Feitosa, de 36, que buscava informações sobre o irmão e ofereceu a Ioná farofa de ovo, levada em um vasilhame de plástico pela parente de outro detento.
Durante toda a tarde, parentes das vítimas assistiam pelo celular às cenas gravadas dentro do presídio, com cabeças enfileiradas e corpos mutilados. Em meio ao horror, detentos balançam uma bandeira branca com a sigla da FDN (Família do Norte) pichada em vermelho. Trata-se de facção apontada como responsável pelos crimes. Os autores dos vídeos diziam palavras de ordem contra o rival PCC (Primeiro Comando da Capital).
— Se meu marido não estiver aqui no IML, a polícia matou ele no mato. A gente não sabe. Vi dois vídeos, mas não tive coragem de ver o resto — contou Ioná Cavalcanti.
Durante a tarde, membros de uma igreja evangélica encostaram o carro e ofereceram refrigerante, água e pães doces. Um jovem tocava no violão hinos de louvor ao Senhor, “na alegria e na dor”. A ONG católica Pastoral Carcerária também conversava com familiares das vítimas.
A funcionária pública Edilene Avelina de Oliveira soube da morte do irmão em um vídeo com decapitados:
— Quem manda nos presídios da cidade é a FDN. Meu irmão não era nem de um, nem de outro. Tava na cela do PCC porque foi ameaçado, e no presídio é a lei de sobrevivência — afirmou Avelina: — O governador do Amazonas diz que vai pagar o funeral de todo mundo. Mas isso não paga o sofrimento da minha mãe. O secretário de Segurança dava entrevista dizendo que a facção estava desarticulada. A verdade tá aqui no IML.
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